Editorial - Omar Costa Hamido
Omar Costa Hamido, Integrated Researcher at CEIS20, Member of the Research Group 4 - Artistic Practices: Imagination, Materialities and Transitions, and Principal Investigator of the IIMPAQCT Project funded by the Maria Skłodowska Curie Actions, signs the editorial of the CEIS20 December 2024 Monthly Newsletter
“Dantes os homens podiam facilmente dividir-se em ignorantes e sábios, em mais ou menos sábios e mais ou menos ignorantes. Mas o especialista não pode ser subsumido por nenhuma destas duas categorias. Não é um sábio porque ignora formalmente tudo quanto não entra na sua especialidade; mas também não é um ignorante porque é um ‘homem de ciência’ e conhece muito bem a sua pequeníssima parcela do universo. Temos que dizer que é um ‘sábio-ignorante’, coisa extremamente grave pois significa que é um senhor que se comporta em todas as questões que ignora, não como um ignorante, mas com toda a petulância de quem, na sua especialidade, é um sábio" (Gasset, 1929, p. 173-4).
No final de 2023, tive oportunidade de conhecer pessoalmente Olga Pombo, autora de ideias e textos de referência no campo da Filosofia da Ciência e de vários ensaios sobre a interdisciplinaridade. Interessantemente, esta oportunidade surgiu por ocasião do Simpósio Internacional Interdisciplining Knowledge: Humanities, Science and Culture, iniciativa promovida pelo CEIS20.1
Olga Pombo diz-se, repetidamente e até com algum humor, desconhecedora do que possa ser a interdisciplinaridade. Talvez porque haja várias, talvez porque a qualidade do que é interdisciplinar não possa capturar-se numa definição/descrição acabada, como que numa foto, porque é preciso um filme (!) capaz de captar a dinâmica do processo que ela representa.
Diz mesmo mais: “eu não sei como se faz interdisciplinaridade. [E] atrevo-me a pensar que ninguém sabe. A interdisciplinaridade é mesmo capaz de não ser qualquer coisa que se faça.”2 Ela acontece inexoravelmente, até mesmo independentemente da nossa vontade, já que é parte integrante dos próprios fenómenos, da realidade e, portanto, de objetos de estudo complexos. O sentido da palavra (e do conceito) de interdisciplinaridade, defende Olga Pombo, “é a procura de uma resposta positiva para o fenómeno avassalador da especialização, a tentativa de ultrapassar os graves cultos culturais, institucionais e heurísticos dele decorrentes.” A citação de Ortega y Gasset, do início do século passado, formulava já esta questão de uma forma bastante atual e até filosoficamente provocatória. Conclui a autora que “a interdisciplinaridade é a manifestação de uma transformação epistemológica em curso, [com] duas consequências principais: o alargamento do conceito de ciência e a transformação da Universidade.”
O CEIS20 tem participado desse processo de transformação, ao assumir como sua missão o “diálogo/colaboração entre Artes, Humanidades e Ciências Sociais”, e acomodar abordagens epistemológicas múltiplas corporizadas nos seus projetos. Dos padrões e alterações climáticas, às políticas de imigração e culturais, da ciência ambiental à história das culturas, da conceção e produção artísticas, na sua relação com movimentos de participação cívica e ativismo social, os fenómenos de hoje, que toma como objeto de estudo, estão demasiado entrelaçados para serem observados e compreendidos isoladamente e a partir de olhares disciplinares estreitos.
O CEIS20 constitui-se como um Laboratório de interdisciplinaridadeS, no sentido de que é pelo próprio processo de investigar a "realidade" que são convocadas visões e leituras e ações (i.e., paradigmas e quadros teóricos e práticas) diferenciadas. Porque tudo se conecta com tudo o resto, a interdisciplinaridade está inerente a qualquer tentativa de compreender o mundo tal como ele é, e de agir nele. Por maioria de razão, está implicada nas práticas e na investigação em Artes. Neste sentido, arriscaria afirmar que no CEIS20 não só se constrói conhecimento sobre a interdisciplinaridade, mas também se exploram múltiplas fórmulas interdisciplinares para construir conhecimento.
E assim foi que no CEIS20 acolheram o IIMPAQCT, projeto que fez “transbordar” os cruzamentos disciplinares para as Ciências Exatas, da Engenharia e da Computação, expandindo ao mesmo tempo relações colaborativas com outros Departamentos na UC (DEI e DEEC).
O IIMPAQCT (Integrated Interactive Music Performance and Quantum Computing Technologies), financiado pelo programa da União Europeia Marie Sklodowska-Curie Actions (MSCA), desafia diferenciações convencionais, quer entre áreas de conhecimento globalmente definidas como Arte, Ciência e Tecnologia, quer no contexto da Arte e práticas artísticas, entre modos diversos de expressão artística (música e artes visuais), quer ainda no contexto da Música, entre composição clássica, computação musical, improvisação e jazz. Em particular, foca-se na articulação da Computação Quântica (CQ) com as práticas criativas.
É expectável que a computação quântica revolucione muitos campos, na Ciência e na Sociedade, e as Artes criativas não serão excepção. No entanto, ainda são muito evidentes a distância e sobretudo a incomunicabilidade entre estes dois mundos, ciência da computação quântica e práticas artísticas. Só a mais recente disponibilização de computadores quânticos na cloud e o desenvolvimento de comunidade e frameworks de programação permitiu o aparecimento de vários estudos sobre aplicações práticas, incluindo nas Artes.
A Composição suportada por computação quântica (QAC, ou Quantum-computing Aided Composition), conceito criado e testado no âmbito do meu projeto de Doutoramento “Adventures in Quantumland”, coloca a ênfase no processo composicional e na interação com performers em tempo real. Neste processo, importa discutir a relação entre o que vem sendo chamado criatividade computacional e as práticas criativas (humanas), as implicações de uma estética Quantum, e o modo como a Arte pode fornecer insights para a compreensão da computação quântica (CQ). Do mesmo modo, a CQ pode ser integrada em práticas criativas sonoras e visuais, importando analisar como este processo poderá também, por sua vez, informar o desenvolvimento de nova tecnologia emergente.
Conhece-se hoje a utilidade da CQ para os campos da criptografia, machine learning, e química, mas ainda relativamente pouco foi explorado sobre a utilidade no campo da produção artística, sobretudo musical - aspecto este em que o IIMPAQCT tem sido um contributo relevante. Este diálogo entre Arte e Ciência tem, assim, que se tornar acessível a profissionais de ambos os campos (empoderando-os, na sua interação e compreensão recíproca) e aumentar a consciência do público e da comunidade em geral para o valor deste nexo entre Ciência, Tecnologia, e Artes.
Destaco como objetivos deste projeto desenvolver um trabalho interdisciplinar:
- focado na investigação e no ensino: i) trabalho conceptual e de investigação centrada na prática artística, em colaborações experimentais nacionais e internacionais;3ii) contribuir para a divulgação e conhecimento da linguagem e ferramentas tecnológicas para artistas e das produções para público em geral, desenvolvendo workshops e apresentações, assim como criar e preparar novo material de formação, organizar ou colaborar na organização de novas ofertas formativas;4
- mas também integrando práticas artísticas e de produção tecnológica e para a indústria criativa: atualizar e melhorar ferramentas tecnológicas para a Composição assistida por computação quântica; construir uma comunidade de interesse, capaz de dominar estas novas linguagens e modos de criação artística. Esta comunidade já existe, como plataforma de informação e comunicação em acesso aberto (community.quantumland.art).
A cultura científica do CEIS20, enquanto centro de produção de conhecimento interdisciplinar, foi o enquadramento adequado para acolher o IIMPAQCT que pretende reforçar pontes epistemológicas e práxicas entre desenvolvimento e inovação tecnológica, performance criativa, e envolvimento multicultural. Este trabalho assume agora ainda maior pertinência, tendo em conta que o próximo ano, 2025, foi declarado pela UNESCO como International Year of Quantum Science and Technology.
¹ https://www.uc.pt/ceis20/interdisciplining-knowledge
² Pombo, O. (2004). Interdisciplinaridade e integração dos saberes. Conferência no Congresso Luso-Brasileiro sobre Epistemologia e Interdisciplinaridade, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil. Liinc em Revista, v.1, n.1, março 2005, p. 3 -15 http://www.ibict.br/liinc
³ Incluindo, entre outros, a co-organização de conferências internacionais como o ISQCMC Berlin - International Symposium on Quantum Computing and Musical Creativity (2023), MCM’24 - Mathematics and Computation in Music (2024), e o ISQCMC 2025.
⁴ Também aqui já ocorreram várias iniciativas e concretizou-se colaboração na organização de ofertas formativas na UC, como o Mestrado em Computação Musical e Design de Som, e o Curso de Formação especializada em Computação e Tecnologias Quânticas.
OMAR COSTA HAMIDO
Omar Costa Hamido is a performer, composer, and technologist, working primarily in multimedia and improvisation. His current research is on quantum computing and music composition, telematics, and multimedia. He is passionate about emerging technology, cinema, teaching, and performing new works. He earned his PhD in Integrated Composition, Improvisation and Technology at University of California, Irvine with his research project Adventures in Quantumland (quantumland.art). He also earned his MA in Music Theory and Composition at ESMAE-IPP Portugal with his research on the relations between music and painting. In recent years, his work has been recognized with grants and awards from MSCA, Fulbright, Fundação para a Ciência e a Tecnologia, Medici, Beall Center for Art+Technology, and IBM. omarcostahamido.com
