A peça A Ilha dos Escravos, encenada pelo Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra em 1969, subiu novamente a palco passado cinquenta e seis anos, pela mão de Joana Ferrajão, antiga aluna de Estudos Artísticos, que foi desafiada por Carlos Costa, diretor da companhia de teatro Visões Úteis e professor no curso de Estudos Artísticos, a navegar de cabeça no arquivo do TEUC, através do projeto REENACT NOW, que conta agora com duas edições e que procura tentar reencenar peças de teatro de companhias antigas.
A peça trata-se de um original de Pierre de Marivaux, do século XVIII, e foi a primeira peça que o encenador Luís de Lima decidiu levar para o TEUC quando iniciou as suas funções. Esta chegou a subir a quatro palcos portugueses antes de ser banida pela censura e um mês antes de estourar a crise académica. Na época, o texto das peças tinha de ser apresentado à censura para ser aprovado, mas Lima decidiu acrescentar um prólogo de autoria própria, após ser aprovada, e foi quando um avaliador viu a peça e percebeu o impacto desse texto e a forma como a peça é representada, que ela é banida. Foi por isso que a censura passou a ver as peças antes de serem encenadas e não apenas lidas.
Enquanto elemento integrante da peça, é-me difícil apresentar um ponto de vista crítico igual ao que um espetador poderia fazer, uma vez que sei o que o público não sabe, mas que nesse sentido me acho na obrigação de partilhar.
O elenco da peça em causa é constituído por diversas pessoas, todas elas a representar duas personagens e algumas até partilhadas entre elas, mas, efetivamente, os atores principais são Maria Rui Cunha, Mariana Banaco e Zé Ribeiro, que facilmente se distinguem pelas suas fatiotas de diferentes cores mas exatamente no mesmo formato. Agora falando desta forma, qualquer leitor poderia pensar: “mas então como se distinguem as personagens?” e isso seria uma pergunta muito fácil de ser respondida; através dos acessórios, obviamente.
Mas antes de tocar neste assunto, acho importante referir que a peça se trata de uma Commedia dell’Arte, uma forma teatral que surgiu em Itália e que teve o seu auge da popularidade entre os séculos XVI e XVIII. As personagens deste género teatral tendem a representar tipos sociais específicos e personagens modelo, mas que tendem a exagerar a realidade. Como tal, há uma personagem muito caraterística que está presente na peça, o Arlequim, que podemos definir como um escravo tolo que possui a sua própria postura corporal, e que é representado pela Mariana Banaco, a única integrante do grupo que já tinha trabalhado com personagens da Commedia dell’Arte. Contudo, esta não era a única máscara presente, havia ainda o Trivelino, o chefe da ilha, uma figura gigante, com uma máscara gigante, que em certo momento faz lembrar a cara de um rinoceronte, e que se usava da “gaiola” localizada no meio do palco para ser o seu corpo, mas este já era interpretado por dois atores, a Maria Rui Cunha e o Zé Ribeiro.
Assim, já nos referimos às duas personagens centrais da peça, mas há ainda mais três: Okassis, o patrão de Arlequim, interpretado pelo Zé; Cleanta, a escrava de Eufrosina, interpretada pela Maria; e Eufrosina, interpretada pela Mariana; e assim já é possível perceber quem faz o quê; mas havia ainda os escravos da ilha que eram interpretados por estudantes da Universidade de Coimbra, a maioria deles também ligada ao teatro, e que acabaram por se tornar importantes num momento crucial da peça, onde as duas personagens da Mariana estavam em cena ao mesmo tempo, e por isso acabaram por se tornar um e interpretar a personagem da Eufrosina em duas cenas seguidas.
Para uma peça realizada em um mês e meio, muito foi feito, mas, ao mesmo tempo, muito mais poderia ter sido, uma vez que a pesquisa ao arquivo do TEUC foi feita em setembro de 2024 e logo aí a peça poderia ter começado a ser pensada, mas os convites para realizar a peça, só começaram a surgir em janeiro deste ano, o que resulta num espaçamento de 3 ou 4 meses em que não se sabe o que aconteceu. Ainda antes mesmo de começarem os ditos ensaios, foi realizado um laboratório de Commedia dell’Arte, lecionado pelo Alexandre Oliveira, que era aberto a estudantes universitários e que permitiu aos participantes fazer parte da peça, sendo de onde surgiram os “escravos”, mas que também contava com a participação da equipa principal, uma vez que, segundo a Joana, ela própria “não sabia nada sobre o género para estar a trabalhar com ele”.
Por se tratar de uma peça que foi representada um mês antes da crise académica, achou-se por bem, realizar algumas referências à Universidade como o "ri-me, fodi-me" dito pelo Arlequim, que se não foi suficientemente audível, com certeza o movimento realizado pela personagem ajudou no seu entendimento, ou "A vossa escravatura ou melhor o vosso curso de humanidades tem a duração de três anos" dito pelo Trivelino, que é o período estipulado para cada curso da licenciatura da Faculdade de Letras. Foi ainda devido a esta referência que os escravos utilizavam as capas dos trajes, o que remete para a ideia de que, enquanto universitários e adultos acreditamos ter um pouco mais de liberdade, mas que continuamos a ter de obedecer a alguém superior, que na peça é representado pelo Trivelino.
Houve um momento que foi implementado na peça para dar tempo à Mariana para deixar de ser a Eufrosina e montar a figura do Arlequim, que foi o momento da festa entre os escravos, no qual a Joana acabou por dar total liberdade aos escravos para agirem como quisessem até ao momento em que o Arlequim entrava em cena e se começava a formar o comboio para os escravos saírem de cena ainda no espírito da festa, o que na minha opinião permitiu aliviar um pouco os nervos que eram sentidos por alguns elementos.
Tal como este, outros “jogos” foram realizados aproveitando os escravos, o momento da corrida no epílogo; as suas cabanas, que eram eles próprios, mas com as capas na cabeça; ou o homem gigante montado no fim da peça. Ainda assim, o termo também pode ser aplicado à mudança de espaço no decorrer da peça, quando esta passa do espaço do TEUC para o palco do TAGV, que dá a sensação de viagem que é comentada pelos elementos que estão no TEUC a introduzir a peça, mas que na realidade representa uma “invasão” ao TAGV, uma vez que, em 1969, não houve a possibilidade de encenar a peça nesse espaço, uma vez que era visto como o teatro da censura, e as portas que separam o corredor da Associação Académica de Coimbra do TAGV estavam sempre trancadas.
O esquema de luz utilizado permitia ao espetador visualizar facilmente tudo o que acontecia no cenário, e algo que foi realizado e que achei surpreendente foi a projeção dos quadrados que pretendem representar a personalidade dos patrões que precisam de ser corrigidos, algo que também foi favorável à visão do espetador, já que o giz utilizado nem sempre era bem percetível.
Se durante a peça, alguns dos atores se mostravam um pouco inseguros ou perdidos, não, não era proposital, uma vez que falamos de alunos que não possuem especialização teatral, que já não atuavam há muito tempo, ou que pisaram o palco pela primeira vez. Assim, além de termos uma peça que foi realizada em mês e meio, também não temos atores profissionais, e que só foi treinada de forma seguida na noite do ensaio geral, ou seja, tudo o que tinha para dar mal poderia dar, mas essa opinião deixo para os que viram a peça como espetadores.
Ficha Artística
Texto original: Pierre de Marivaux
Direção e dramaturgia: Joana Ferrajão
Interpretação: Mariana Banaco, Maria Rui Cunha, Zé Ribeiro, Ana Teixeira, Gil Marques, Leka Branco, Chico Guazzelli, Inês Machado Bastos, Carolina Amaral, Catarina Pratas, Filipe Abreu Saraiva e Raven do Canto
Cenografia: Diogo Barbosa
Figurinos e Maquilhagem: Lavinia Zuccalà
Desenho de luz: Nuno Vasco
Banda sonora: Nuno Pompeu
Coordenação de produção: Cláudia Alfaiate
Contabilidade: Helena Madeira
Direção artística e científica da segunda edição de REENACT NOW: Joana Ferrajão
Coordenação artística e científica de REENACT NOW: Carlos Costa
Supervisão científica de REENACT NOW: Fernando Matos Oliveira
Produção: Visões Úteis
Formação e Consultoria de Técnica da Máscara: Alexandre Oliveira