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Canções i Comentários – Exmo. Sr. Blarmino (FM)

Filipa Machado, 13 julho de 2015

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Canções i Comentários – Exmo. Sr. Blarmino, espetáculo inserido no Festival de Encontros de Novas Dramaturgias, organizado pelo Teatro Académico de Gil Vicente, pode ser aos olhos de muita gente um espetáculo simples, e a verdade é que, à primeira vista, ele não é, de facto, complexo. Com uma estrutura básica que se constitui por momentos de narração e momentos musicais, o espetáculo vai intercalando estas duas linhas à medida que conta a história de uma figura praticamente desconhecida, Blarmino (não Belarmino, filme de Fernando Lopes!), colega de casa de Rui Catalão – narrador, autor e diretor cénico deste espetáculo.

Rui Catalão é um artista que divide o seu tempo entre a escrita e a dança. Foi jornalista e crítico do jornal Público, escreve argumentos de cinema e textos sobre as artes do espetáculo. Colaborou com coreógrafos como João Fiadeiro, Miguel Pereira e Ana Borralho & João Galante e criou várias peças de dança durante a sua estadia na Roménia, onde esteve ligado ao CNDB (Centrul National al Dansului din Bucuresti). Catalão decidiu abandonar a sua carreira de jornalista e crítico no início dos anos 2000, embora ainda escreva episodicamente para o suplemento Ípsilon, de modo a poder contar em palco histórias da sua vida. Um dos espetáculos em que se verifica este aspeto é Dentro das palavras, onde Rui faz um balanço do tempo em que viveu na Roménia, trabalhando na área da dança e refletindo sobre o seu abandono gradual da linguagem falada como principal forma de expressão. Outro espetáculo da sua autoria que segue esta opção artística é Canções i Comentários – Exmo. Sr. Blarmino.

Assim, ao longo de uma hora e quarenta minutos, Rui Catalão vai falando para o público, relatando momentos que viveu juntamente com o seu colega de casa Blarmino, um jovem músico. Desde a enxurrada que fez a casa dos dois jovens ficar coberta de lama, até ao salvamento de um cão às portas da morte, as histórias que envolvem Rui e Blarmino terão o seu lado mais cómico, soltando umas breves gargalhadas do público, mas também têm o seu lado mais sério e consciencioso. Inicialmente, fica-se com a sensação de que aquilo que Rui nos está a contar é mentira e que o Blarmino não existe, que é uma personagem criada pelo narrador. Só passado algum tempo é que começamos a perceber que Blarmino é real, que todas as pequenas histórias que nos foram descritas aconteceram e que este espetáculo é uma espécie de biografia, tornando presente esta figura enigmática através das suas músicas. Da mesma forma, o espetáculo dá conta de uma ausência, pelo facto de ouvirmos apenas gravações das suas músicas e não o próprio artista a cantá-las.

Mas quem é Blarmino? Esta é uma pergunta que o espetador estará constantemente a perguntar a si mesmo ao longo do espetáculo. Rui Catalão responde: “O maior talento musical português meu contemporâneo”. Uma afirmação como esta assusta. Se Blarmino foi um artista musical português tão talentoso, porque é que ninguém, ou digamos antes, quase ninguém, ouviu falar dele? Afinal de contas, a história da sua “carreira” musical não terá ocorrido em tempos obscuros e longínquos. Foi há pouco tempo, no final do século XX e início do século XXI. Terá sido também devido a este desconhecimento do público em geral que Rui Catalão decide criar este espetáculo, em jeito de “resgate cultural”, partilhando o trabalho do seu antigo colega de casa e demonstrando o seu talento ao país que o ignorou.

Se o espetador se concentrar apenas em Blarmino, o objetivo deste espetáculo não parece ter sido atingido. Blarmino é um artista que, apesar das suas mais de 70 canções e dos vários concertos em Portugal, terá ficado completamente escondido no campo musical português. Mas é também, além disso, uma figura que simboliza todos os jovens portugueses da geração de 70, pós-25 de Abril, incentivados a seguirem os seus sonhos e vocações sem se preocuparem com as limitações do mercado de trabalho e, como consequência, o desemprego, a emigração, a instabilidade profissional e uma profunda insatisfação pessoal. Este espetáculo vem apenas relembrar esta dura realidade que, embora seja do passado, também é do presente. É cada vez mais a realidade de todos os jovens que lutam atualmente por uma formação e por uma oportunidade profissional no seu país, que raramente lhes é concedida, obrigando-os a procurarem outras alternativas no estrangeiro. Blarmino é, segundo Rui Catalão, “a grande voz da sua geração exatamente, porque não foi escutada pela sua geração”. Este é o paradoxo e o conceito que Catalão defende em Canções i Comentários – Exmo. Sr. Blarmino, interpretando as letras e as músicas do amigo, recuperando também politicamente uma presença ausente.

A música é obviamente um dos elementos mais importantes deste espetáculo. Tudo o que ouvimos é da autoria “mítica” de Blarmino. Por vezes chegamos a ouvir várias versões da mesma música, demonstrando os vários estilos musicais que Blarmino atravessou na sua carreira. Quando nos é apresentada uma versão mais eletrónica de uma música, sabemos que se enquadra num tempo mais antigo, quando Blarmino ainda era um duo. Quando ouvimos uma versão acústica, temos noção que é uma versão mais recente e trabalhada a solo. É importante referir que em palco, atrás de Rui Catalão, está Pedro Oliveira, o ex-parceiro do duo que, ao longo do espetáculo, vai tocando novamente as músicas e salientando ainda mais a presença-ausência de Blarmino. Ouvi-las é provavelmente das partes mais difíceis deste espetáculo. Não por serem más músicas, mas por serem exatamente o contrário: são músicas muito boas. Tão boas ou melhores do que as que muitas vezes ouvimos na rádio. E no entanto, é certo que boa parte do público que assistiu a este espetáculo, para não dizer o público todo, desconhecia completamente estes trabalhos musicais. Ouvir “estas” músicas de Blarmino é ter de lidar com um sentimento de culpa, por não termos dado a devida atenção a este artista evanescente. Quando, em vários momentos do espetáculo, Rui Catalão confessa que se sentiu sortudo por ter acompanhado a carreira musical do amigo, parece que está, por um lado, de facto a elogiar o talento do colega (ou não fosse esse um dos propósitos deste espetáculo), mas, por outro, parece querer dizer-nos na cara, de forma subtil e irónica, como um talento pode ter sido desperdiçado e ignorado.

Referi antes o espetáculo através do qual Rui Catalão se começou a afastar da linguagem falada como forma principal de expressão. Canções i Comentários – Exmo. Sr. Blarmino retoma esta ideia e esta prática artística. Quando o momento narrativo termina e o momento musical começa, vemos, por vezes, o autor deste espetáculo a dançar ao som das músicas de Blarmino. As interpretações sobre cada dança ficam à responsabilidade da pessoa que as vê, mas todos certamente concordam que aquilo que Rui tem a dizer sobre as músicas do amigo não pode ser expresso por palavras e, portanto, tem de recorrer ao corpo em movimento.

A luz é trabalhada com base nas duas linhas (narrativa e musical) que o espetáculo articula. Quando assistimos ao momento de narração, a luz ilumina ligeiramente o público e o palco, sem grande intensidade, provocando uma sensação de intimidade entre narrador e espetador, que vão conversando. Nos momentos musicais, a iluminação é bastante variada, mas concentra-se muito nas cores quentes, como o laranja ou o vermelho. Um trabalho perspicaz e inteligente em relação à iluminação, em especial quando a luz dialoga com a letra da música que estamos a ouvir, como sucede quando a letra da música refere raios de sol e a luz simula esta imagem com vários focos de luz a apontarem em diferentes direções, imitando os raios solares.

Canções i Comentários – Exmo. Sr. Blarmino deveria ser um espetáculo obrigatório por duas razões: porque presta homenagem e porque divulga o legado de um artista português incógnito que, por mais talentoso que fosse, não teve o reconhecimento merecido. Eis a principal razão para ser ver este espetáculo.

Ficha Técnica

Título: Canções i Comentários – Exmo. Sr. Blarmino

Autoria e Direção Cénica: Rui Catalão

Música: Pedro Oliveira (sobre gravações de Blarmino)

Luz: Cristóvão Cunha

Som: João Bento

Fotografia: Patrícia Almeida

Residência Artística: O Espaço do Tempo

Coprodução: Teatro Maria Matos

Produção: Tânia M. Guerreiro / Produções Independentes

Organização: Reitoria da Universidade de Coimbra, TAGV