Forma Para Um Guião Possível: Quando a Estrutura Importa Mais Que a Narrativa (RT)
Rodrigo Tavares, 26 setembro de 2025
Cerca de 15 minutos semi-silenciosos com duas personagens a tomar notas, e a performar tarefas relacionadas a necessidades básicas, como ir buscar um copo de água, bebê-lo, etc., são a primeira coisa com que o espetador se depara ao entrar na sala de espetáculos do Teatrão para ver a peça de Sara Barros Leitão.
Prender o espetador à forma é um compromisso que Guião Para Um País Possível leva ao extremo, criando por vezes momentos entediantes, mas ao mesmo tempo ajudando a tornar coesa a ideia encontrada na génese desta peça, que por natureza é desorientadora e passa um pouco por todo o lado. Esta ideia originou de gravações de várias sessões parlamentares, que são aqui distorcidas artisticamente, amalgamadas, às vezes exageradas, outras vezes dando lugar a cenas febris que partilham do mesmo tipo de surrealismo encontrado num poema de Alexandre O’Neill ou num filme de Luis Buñuel. As conexões com esta vertente do surrealismo acabam por criar alguns dos momentos mais interessantes da peça, em específico numa cena que consiste nos atores a gritar um monte de apartes, que serviriam de resposta a uma afirmação inexistente de um deputado. Também a emulação de um teatro de fantoches mais tarde na peça pode ser ligada a O’Neill, tendo este sido guionista do filme Dom Roberto de 1962. Por outro lado, a justaposição entre estes dois momentos pode deixar os espetadores espantados com a diversidade de influências encontradas nesta peça. Sara salta de ideia em ideia sem dar muito tempo ao espetador para se acomodar ao que aconteceu na cena anterior, o que dá à obra uma certa rebeldia, acompanhada de um sentimento que a peça está a fazer estes saltos só porque quer e pode.
Da rigidez conceptual encontrada nesta peça nasce uma faca de dois gumes: sim, é verdade que na ausência de uma narrativa unificadora, que já parte da intenção inicial da peça, a forma é a única coisa com que ficamos, e tem o dever de carregar por completo esta antologia. Por outro lado, a integridade artística passa a autoindulgência, especialmente numa sequência que parece durar uma eternidade, que consiste numa encenação de todos os votos pela legalização da eutanásia a um passo dolorosamente lento, criando uma espécie de transe no espetador, uma complacência da qual é difícil sair.
Outro aspeto que salta ao olho desde o início é a cenografia. Na parte inicial da peça esta consiste em dois móveis de madeira multifunções: às vezes são mesas, outras cadeiras, outras escadas. Em palco estão também dois microfones (mais tarde é adicionado um terceiro) que são essenciais para a peça. Uma parede de contraplacado é mais tarde levantada, revelando um amontoado enorme de cadeiras que se impõe no espetador daí em diante. Nunca é diretamente referenciado pelo elenco, mas mantém constantemente a sua presença perplexa e intimidante. Estas decisões de cenário revelam um certo lado de ingenuidade performativa pela parte de Sara que vem do apelo às sensações criadas por repetições exaustivas de padrões: sessões parlamentares são sempre uma quantidade cansativa de cadeiras, sempre uma série de apartes, pessoas a falar para microfones, a mesma etiqueta, as mesmas burocracias. Tudo isto é tornado em símbolos simplificados e caricatos (como o exemplo das cadeiras amontoadas, que parecem ser uma alusão à quantidade de cadeiras no Parlamento), como a mente de uma criança teria tendência a fazer.
Por fim, a parte final da peça leva-a a um clímax, esta cena em parte compensa todo o tédio intencional que temos de passar para lá chegar. Serve como homenagem à revolução de 1974, e ajuda a impor o amor por liberdade artística radical que a peça exibe como forma de expressão. Uma peça de arte que no Estado Novo seria considerada degenerada e sem valor é agora celebrada, ou pelo menos aceite como legítima.
Ficha Técnica e Artística
Dramaturgia e encenação: Sara Barros Leitão
Interpretação: João Melo e Margarida Carvalho
Desenho de luz: Cárin Geada
Montagem e operação de luz: Luís Ribeiro
Composição musical: Pedro João
Desenho de som e operação: Mariana Guedelha
Figurinos: Cristina Cunha
Confeção de figurinos: Emília Pontes e Domingos Freitas Pereira
Conceção de cenografia: António Quaresma e Susete Rebelo
Execução de cenografia: António Quaresma e Nuno Guedes
Execução dos telões: Beatriz Prada, Cristovão Neto e Nuno Encarnação
Direção de produção: Susana Ferreira
Produção e Comunicação: Mariana Dixe
Coordenação da pesquisa: João Mineiro
Apoio à dramaturgia e coordenação de Parlapatório: Carlos Malvarez
Interpretação em Língua Gestual Portuguesa: Joana Sousa e Pedro Oliveira
Fotografia de cena: Teresa Pacheco Miranda
Design: Marta Ramos
Produção: Cassandra
Apoio à residência: CRL - Central Elétrica
Residências: Teatro Municipal Baltazar Dias, Teatro Viriato
Residência de estreia: Centro Dramático de Viana - Teatro do Noroeste
Coprodutores: 23 milhas, Casa das Artes de Famalicão, Centro Dramático de Viana / Teatro do Noroeste, Teatrão, Teatro-Cine de Pombal, Teatro-Cine de Torres Vedras, Teatro Municipal Baltazar Dias, Teatro Viriato
Projeto financiado por: República Portuguesa – Cultura / Direção-Geral das Artes e Comissão Comemorativa 50 anos 25 de Abril
Apoio à Criação: Abril é Agora