Não Seremos Nós os Assassinos Quando é a Nossa Mão a Impor a Faca? (DG)
Dulce Rafaela das Neves Gomes, 30 maio de 2025
Talvez fosse o instinto, e, no entanto, A Matança do Porco do Pai, ainda antes do espetáculo daquela noite de 21 de fevereiro, trazia para o seu possível enredo o nome de George Orwell com o Triunfo dos Porcos em didascália. Realmente, o primeiro monólogo de Nuno Nunes provou-o – “aquele texto onde os suínos governam”, grunhe o Porco, sem citar o nome do autor que escreveu 1984 e Homenagem à Catalunha, em consonância com o Pai, que refere Carl Marx ao queixar-se do seu quotidiano fabril.
Sónia Barbosa, atriz natural de Viseu e a cabeça por detrás do texto e encenação, confirmava a construção dessa crítica no seu processo criativo, esclarecendo que “o propósito é o de iluminar essas zonas de sombra, torná-las visíveis”. Na Sala Grande do Teatrão, o cenário representava a sala de jantar de uma família que poderia ser a de qualquer espetador presente no espaço, porque, afinal, “isto é teatro”. Representam dilemas, hipóteses de vida. E naquela mesa de madeira, Nunes observava os seus filhos (Joana Gomes Marques e Hugo Inácio) e a esposa (Sónia Barbosa) com a mesma expressão e fisicalidade de um omnívoro que “tem fome” e destraça tudo à sua passagem.
No palco da realidade rural, a matança do porco está longe de ser um ato invisível. Comunica-se e celebra-se. Convidam-se tanto os vizinhos como os carrascos, enquanto esquarteja-se e cozinha-se o imolado de acordo com as hierarquias da carne. Tal como a Filha e a Mãe chamuscam o Pai opressor aos olhos de quem foi solicitado a matá-lo, o álcool do seu cantil espera-os para o festejar. O enredo envolve-se no motivo zoomórfico de forma recíproca, desvelando aos poucos as narrativas de poder e violência nas dinâmicas familiares que se escondem constantemente na penumbra social.
O Porco não representa simplesmente o animal que vai ser morto sobre o seu desenho na mesa de jantar. Na perspetiva cénica de Barbosa, o nome comum expande-se para além da sua definição primária. Mamífero da família dos suídeos (que iluminado por uma “nesga” de luz, queixa-se da fome, da sua antiga liberdade e do destino que está traçado), aquele que é indecente e obsceno (o Pai (Nunes), que submete os seus à sua infelicidade e monotonia, e o Filho (Inácio), que se excita perante a violência). "Porco!", denunciava a irmã, e Inácio subia para cima da mesa sobre os seus membros como um animal enfurecido. O motivo respira, vive na mímica de cada ator que lhe dá a voz, no corpo encolhido debaixo do tear que estremece e guincha à luz da candeia, nas oito mãos que figuram os seus cascos, e no seu grunhido, que principia e conclui a matança.
A tradição da arte de “matar o porco” remonta desde o antigamente. Referia-se no seio familiar como um louvor, uma pedagogia que enredava gerações nas adversidades da vida na terra, e um aviso dos velhos a quem a fome, num outrora, obrigou a aproveitar o animal no seu todo, desde a pele ao tutano do osso. O sofrimento entendia-se nos guinchos daquele ser que, pendurado de focinho para baixo, dava o seu sangue à bacia daqueles que o executavam. Era para um bem maior, diziam os antigos.
E assim explicava a Carniceira interpretada por Márcia Mendonça, a primeira a desferir o golpe da faca – sempre afiada e segura em mão firme –, direto ao coração de um suposto “porco” da classe operária a quem lhe pediram para matar. No espetáculo, o seu primeiro monólogo denota, uma vez mais, a dramaturgia de Barbosa e como o motivo orientou a sequência da sua peça. A matança do porco está tão enraizada na tradição portuguesa como o está na memória daqueles que a assistiram, assim como a violência está tão intrínseca no modo humano, tão paradoxalmente animal.
No engenho contraponto com o Porco e o estereótipo familiar, Mendonça encarna não somente o arquétipo hollywoodesco da femme fatale vestida de preto e cabedal que, convicta e ousada, descreve o seu modus operandi, mas, também, a personagem dentro do teatro que questiona o espetador sobre a moralidade dos seus gestos e a veracidade da ação que ocorre aos seus olhos: será que animal suspeita da sua chegada? Será ela a vilã por cometer tal ato? Será a matança um assassinato? Seremos assim tão diferentes de um animal? Não seremos nós os assassinos quando é a nossa mão a impor a faca?
Criou-se, assim, um terceiro plano no ambiente cénico que não coloca em causa a estrutura dramática, contudo, representa um parêntese onde a perspetiva, o juízo moral e a empatia do público entram e se misturam. O Pai, simultaneamente porco, violador e déspota, é morto quatro vezes: à faca da Carniceira, ao emasculador da Filha, ao bastão do Filho e, finalmente, às mãos da esposa, que transforma o resguardo da sua poltrona no seu sudário. Pouco ou nenhuma é a pena que se nutre no seu último grunhido.
Celebra-se esta morte com qualquer líquido que venha no cantil da Carniceira, assim como os antigos o faziam quando se preparava o sangue para o sarrabulho ou se separavam as primeiras carnes. O Porco do Pai desenvolvido por Barbosa estava longe de ser inocente, e este “Ritual de Domingo” quase é desejada pelo espetador, mais não seja para alimentar a fome de vingança que cresce à medida que Nunes contamina o cenário com a sua suposta infelicidade mundana e monotonia laboral.
Ficha Artística
Título: A Matança do Porco do Pai
Texto e encenação: Sónia Barbosa
Interpretação: Hugo Inácio, Joana Gomes Martins, Márcia Mendonça, Nuno Nunes, Sónia Barbosa
Cenografia: Susete Rebelo e António Quaresma
Figurinos: Sónia Barbosa, com apoio de Ricardo Carneiro
Música: Ana Bento
Assistência e design de comunicação: Juan Brízida e Nuno Rodrigues
Apoio à dramaturgia: Sandro William Junqueira
Fotografia: Estelle Valente
Registo de vídeo e apoio à gravação: Tomás Pereira e Bruno Pinto
Apoio à investigação: Rui Macário
Assistência à encenação: Ricardo Carneiro
Assistência à produção: Bárbara Marques
Assistência à construção: Jonas Ribeiro
Técnica: Fernando Queiroz
Local: Teatrão