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Ópera dos Vivos (JS)

Joana da Costa Santos, 26 maio de 2014

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“Para haver um mundo melhor é preciso construir outro.” A proposta é a criação de quatro mundos diferentes materializados através de nove atores e da apresentação de várias realidades distantes no tempo, que se quer fazer agora, para um público de hoje. Estes quatro mundos são então quatro atos que se complementam numa viagem ao longo de quatro horas de revisitação ao passado de uma história de todos. São quatro peças teatrais que poderiam ser autónomas, mas que quando interligadas formam um todo maior, sem redundância ou entorpecimento. As formas de mediação da ação são várias: o teatro, o cinema, o espetáculo musical e a telenovela. Nesta ordem há uma tentativa de traçar um percurso do lugar mais primário, até ao mais mediático, uma espécie de desvirtuar do lugar e do estado de berço do ator e do artista. Trata-se de um percurso da mercantilização da arte, do seu estado no passado e na atualidade. Os três primeiros atos são um retrocesso no tempo, embora não seja sobre o passado que se queira falar. Usa-se o distanciamento caraterístico do teatro épico de Brecht para revelar e mostrar as questões atuais da sociedade, mais explícitas no quarto ato. Embora os diferentes atos revelem muitos elementos caraterísticos da história do Brasil, essa não se fez sozinha nem foi independente, e mesmo tendo sido vista por um público maioritariamente português, seria mentir dizer que não nos conseguimos ver no mesmo espelho. Os quatro atos são numerados e divididos pelo espaço e é atribuído um nome a cada um.

Ato Primeiro – Sociedade Mortuária

Uma pequena sala de teatro acolhe a natureza mais crua do ser teatro. Os atores deambulam na pele de várias personagens expondo a realidade de uma época de conflitos e de mudanças de paradigmas. Numa sociedade rural marcada pela diferença de classes, surge a professora que tenta fazer acreditar aos seus alunos adultos no indivíduo capaz dentro de cada um deles, e do poder da alfabetização e da arte como instrumentos de consciencialização na luta de classes. Para além da figura idealizada da professora, há aqui também uma mãe coragem, que como a mãe de Brecht, entusiasma-se com a aprendizagem, tal como todos os seus companheiros que querem aprender a ler através das palavras que interessam, como por exemplo “associação”. É todo um estado de teatro muito sincero, com os pés descalços, sem grandes artifícios. Os atores e as personagens cantam ritmando a entoação, mas esta não chega ao cantar desgarrado de protesto, é tudo muito mais simples. São feitas algumas caricaturas com tom cómico – a rapariga estadunidense em missão de paz e liberdade que vê aquela situação com a superioridade do olhar ocidental, o rapaz que responde em provérbios mesmo quando se finge de morto – mas o sorriso nunca se fixa por muito tempo no rosto do público, ele surge, espontâneo e instintivo, mas o riso é como que apanhado pela frontalidade dos objetos levantados em cena. Não existe um sentimentalismo saudosista com o retomar às questões políticas da esquerda e direita, dos países comunistas e daqueles que enviavam missionários para atenuar os efeitos vermelhos possíveis. Mas é política aquilo que vemos e que se segue nos atos seguintes.

Ato Segundo – Tempo Morto

O formato do cinema é aqui usado para pôr em contradição duas pontas então distantes da cultura, nesta altura tão postas em contradição. O teatro anticapitalista, com uma forte mensagem social contra o formato televisivo com enormes apoios financeiros das classes conservadoras. O cinema é aqui um meio neutro no seu simbolismo, capta os ensaios de um grupo de teatro de esquerda, as suas reuniões e convívios onde se discute aquilo que se pode fazer e também aquilo que já se faz em países com governos comunistas, como por exemplo Cuba. A câmara marca presença nas manifestações e ajuntamentos de rua que incitam a uma revolução pacífica do povo. Mas filma igualmente as movimentações dos grupos de direita para a implementação de uma nova forma de controlo dos media, as negociações engravatadas para a procura de financiamento, as forças militares prontas a pôr em percurso os seus planos políticos. A personagem que põe estes dois mundos em coligação, apaixona-se por uma atriz do grupo de teatro que apoia e simultaneamente financia a criação de uma estação televisiva. Este banqueiro da burguesia põe em dicotomia estes dois polos que irão separar-se cada vez mais aquando do golpe político conservador.

Ato Terceiro – Privilégio dos Mortos

Este terceiro ato promete um show, um grande palco, muitos enfeites, roupas coloridas e brilhantes, um espetáculo dinâmico entre os artistas que cantam, dançam e tocam instrumentos. Estes são os Intactos que abrem o palco para a verdadeira artista que fez encher a plateia, Miranda, uma cantora de protesto que depois de três anos em coma, volta a atuar. Nestes três anos o mundo mudou e apenas Miranda não o sabe. Vestida com um simples vestido branco, e protegida com a sua voz, contrasta com os seus companheiros. O concerto começa ansiando cada vez mais a presença da cantora, e o grupo que a acompanha explica que a sua orientação, já não é a canção de intervenção, mas sim uma música mais alegre, e que espera que o regresso de Miranda seja “numa condição mais concreta, mais lúcida, mais eletrónica” mais industrial. Na plateia, dois apoiantes da cantora vão-se questionando quanto às escolhas artísticas do grupo que radicalmente foram alteradas. Acusam-nos de se venderem, do espetáculo estar vazio. Mas do palco respondem que já não é tristeza aquilo que o público quer ouvir, e que tal como a música, a política também mudara, já ninguém pensa na luta de classes, nem numa separação tão acérrima da esquerda e da direita. Miranda, a verdadeira artista, forçada a mudar o seu repertório, não consegue prosseguir com o espetáculo. A sua voz não consegue entoar aquelas palavras que já não são as suas, então tenta falar para o seu público. Perdida naquele ambiente luminoso a sua voz é calada pelo produtor do espetáculo e retirada do palco. O público protesta, o público que no início distribuíra panfletos com palavras de Brecht “Há fases em que os sonhos não se convertem em planos nem as intuições em conhecimentos nem a nostalgia nos incita a nos movimentarmos. Esses são maus tempos para a arte.”, aludindo assim para o espetáculo que estamos prestes a assistir.

Ato Quarto – Morrer de Pé

Há novamente uma mudança de registo num novo espaço, são colocadas duas filas de bancadas viradas uma para a outra no palco, diminuindo o espaço que separa a cena do público. A cena é agora um estúdio televisivo para as filmagens de uma telenovela com um pequeno cenário que marca um ambiente caseiro, os atores e a equipa produtora. A equipa depara-se com um problema ideológico quando o ator decide que não quer morrer. Ele acha que o suicídio não se enquadra na personagem, que esta não deveria sentir remorsos nem vergonha e por isso não consegue apertar o gatilho na sua cena final. A única razão que a assistente de produção apresenta para convencer o ator de que a personagem tem que morrer é o facto de que aquilo que está escrito no guião não pode ser contornado nem refeito. Vemos então o trabalho de um ator limitado ao serviço de um guião feito pelo guionista que nem assiste às filmagens. A mãe da assistente foi uma atriz que popularizou uma importante fase do teatro brasileiro (referido nos atos anteriores, tal como a atriz – Júlia). O ator conhecia-a e refere-se constantemente à sua figura, transportando um passado do teatro para o estúdio de uma novela de televisão, contrapondo novamente estes dois lugares. A atriz que contracena com o ator é a personagem típica da diva que precisa de imensa atenção por parte da equipa e de imensos comprimidos para os nervos. Tem consciência do seu papel enquanto atriz de novela agravando-se quando se apercebe do carinho que envolve a mãe da assistente. Existe neste ato, de uma forma bem exposta, uma hierarquização da equipa necessária para a produção de uma novela. Mas a novela serve também de exemplo para as várias criações artísticas, principalmente aquelas mais comerciais, onde existe sempre setores ignorados. Vemos uma figurante facilmente dispensável, substituída por uma mulher da mesma cor, a cozinheira, que por sua vez, não subestima o seu trabalho e preocupa-se com aquilo que vão comer e o desperdício que se pode causar. No fim o ator já aceita morrer naquele episódio, rendido à submissão do papel e da industrialização da sua profissão. Pois ao que parece, este velho ator, voltou às televisões graças ao convite do produtor.

O grupo de teatro Companhia do Latão nasce em 1996 em São Paulo sob a direção de Sérgio de Carvalho. Iniciou-se na pesquisa da obra de Bertolt Brecht (1898–1956), autor conhecido pelas suas peças com fortes críticas políticas, sociais e humanas que nos obrigam a pensar não enquanto indivíduos, mas enquanto membro de uma sociedade: teatro épico. Brecht começou a escrever para um jornal em 1914 e em 1922 estreou a peça Baal – os Tambores da Noite. Apesar de perseguido pelos nazis, nunca deixou de escrever, desde poesia, teatro, ensaios, roteiros de cinema. Viveu numa época tumultuosa, as suas obras refletem os problemas fundamentais do mundo atual e luta pela emancipação social da humanidade. Faz pensar ao mesmo tempo que diverte, não se limita a explicar o mundo, mas dispõe-se a atuar nele através de um teatro que atua como arte e ciência. Em 2007, após a encenação de O Círculo de Giz Caucasiano, peça escrita no final da Segunda Guerra Mundial durante o exílio na América e que questiona a disputa global entre duas fazendas coletivas que lutam pela posse de um vale fértil, a Companhia do Latão vai desenvolver um trabalho em torno de várias peças teatrais deste autor, bem como a sua base teórica. Apresentam também criações de dramaturgias próprias, tal como Ópera dos Vivos. O seu trabalho é direcionado para as questões sociais, levando novamente para o lugar do teatro o espaço da crítica a nível popular. Para além dos espetáculos de teatro, a companhia também desenvolve várias publicações desde a edição das peças do grupo, bem como revistas periódicas (Vintém e Traulito). Abrem ao público alguns ensaios aquando da construção das peças, e fazem leituras encenadas, abrindo o leque das possibilidades de aproximação com a comunidade. A Companhia do Latão não se restringe ao formato teatral, tendo já havido a possibilidade de se aventurar nos meios audiovisuais como o cinema, em forma de documentário e filme, e na televisão. São vários os elementos caraterísticos da Companhia do Latão, a música é um deles. É dada uma grande importância à voz e à voz musicada. Em Ópera dos Vivos os músicos ocupam o lugar da cena ritmando a ação e os diversos momentos cantados. Várias e diferentes artes combinadas em palco: teatro, música, política, ópera… numa tentativa de viver o aqui e o agora do teatro, mas sem esquecer e refletindo o passado e o futuro da sociedade.

Ficha Técnica

Texto: Ópera dos Vivos

Direção de produção: João Pissarra

Dramaturgia e direção: Sérgio de Carvalho

Coordenação de pesquisa: Roberta Carbone

Direção musical: Martin Eikmeier

Criação audiovisual: Luiz Gustavo Cruz

Iluminação: Melissa Guimarães

Cenografia e figurinos: Renato Bolelli Rebouças e Vivianne Kiritani

Elenco: Carlos Alberto Escher, Helena Albergaria, Ney Piacentini, Renan Rovida, Rogério Bandeira, Rony Kores, Ricardo Monatero, Rodrigo Bolzan, Adriana Mendonça, Carlota Joaquina