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Os Cadáveres Regressam Para Dançar e Falar Sobre a Guerra Colonial (MP)

Maria Primitivo, 30 maio de 2024

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Os Cadáveres São Bons Para Esconder Minas, o nome sugestivo e enigmático da criação de 2022 do Teatrão, agora em Reposição 30 Anos. Aquilo que propõe alimenta a curiosidade: abrir espaço de discussão sobre a Guerra Colonial, que se arrastou por 13 longos anos, e que parece agora esquecida. Como se esquece um esqueleto no armário. Com dramaturgia de Jorge Palinhos e encenação de Isabel Craveiro, a peça apoia-se em testemunhos de ex-combatentes com stress pós-traumático. São, por tudo isto, sólidas as expectativas com que me sento na plateia, no 1.º de Maio, 50 anos depois do 25 de Abril.

As luzes diminuem de intensidade deixando focos amarelados ao fundo e o público vai deixando as suas conversas. Bac. Cinco atores nus entram em cena no espaço escuro pouco iluminado. A sala está silenciosa sob o peso dos corpos sem roupa de Afonso Abreu, David Meco, Diogo Simões, João Santos, Teosson Chau. Quando começam a vestir-se, há um certo alívio. Avançam e colocam-se entre as sete barras verticais de metal que assentam no chão numa base quadrada. Depois empurram as volumosas tábuas de madeira suspensas na parte superior das barras metálicas, fazendo-as oscilar como um pêndulo. Tic tac tic tac. Vestidos com coletes de camuflado, calças castanhas justas e bolsas à cintura, aqueles jovens são agora soldados na recruta à espera de ir para a guerra no ultramar.

Transformando as tábuas de madeira num barco, partem. Um dos soldados acena ansiosamente à família que fica. Tudo isto imaginamos, porque não acena para ninguém, e não há barco, tal como não há mar. Os gritos de despedida, o som das ondas, a sirene de navio, a posição dos corpos, sugerem. O resto fica a critério da nossa fantasia. A peça vai trabalhar nesse campo, do imaginar, jogando com o cenário espartano, os corpos dos cinco atores e algumas mudanças de guarda-roupa e adereços. Também através da luz e do som. Como quando se atiram ao chão com o estrondo de uma explosão, acompanhada por uma luz intensa que acende repentinamente.

Esta opção, coaduna-se com a ideia de criar uma certa estranheza, que elimina a ilusão de real. Esse distanciamento fomenta o pensamento crítico sobre o que se vê e ouve. Um exemplo é o movimento corporal dos atores que por vezes se aproxima da dança, torna-se plástico. Numa das cenas finais, os atores/soldados movem-se de forma caótica pelo espaço de palco, entre balões de água (outro mecanismo), com ou sem corante vermelho e alguns com “tripas”, que rebentam em si e uns nos outros como bombas. Ao som de Dissan Na M bera, em movimentos que variam rápida e fluidamente entre dança, marcha e ser ferido, a diferença de uns para outros dilui-se até quase se dissipar. Aquele corpo magro em tronco nu com uma saia comprida que esvoaça lentamente dá um lado fantástico à cena. Pode ser a morte a espreitar os mortais, até que é agarrado por trás por um soldado, transformado em mulher, e violado. Os corpos ganham novos significados, despem-se e deixam-se contaminar pela interpretação de cada um de nós.

O constante diálogo entre o que vemos e o que imaginamos acompanha os choques repetidos entre o caráter jovem e humano dos soldados e o absurdo e horrível da guerra. Levando à que parece ser a questão central da peça: aqueles soldados, que combateram nas colónias contra os guerrilheiros independentistas, foram heróis ou assassinos? Inocentes ou responsáveis? Entre tentar sobreviver e ser jovem, aqueles rapazes-homens tanto se confrontam com a morte e disparam tiros como fazem concursos de braço de ferro, jogam à bola, bebem e procuram mulheres. Um momento discutem sobre um penálti, no segundo atiram-se ao chão porque o golo atingiu uma mina, para logo de seguida debaterem sobre quem vai buscar a bola. É absurdo, como a sua situação, e não há uma resposta simples à questão.

A música que encerra a peça tem uma letra cantada pelos atores em jeito de pergunta-reflexão: “Era ou não era? / Os putos que foram para a guerra / Na verdade eram putos / E pensavam que eram feras / Eram ou não eram heróis? / Tinham ou não tinham coragem? / Eram ou não eram forçados? / A fazer aquela viagem”. Um deles diz apenas: “fala”. Palavra recorrente ao longo dos 80 minutos da peça, converge no mesmo ponto: a necessidade de tirar o esqueleto do armário e começar a desvendar o nosso passado colonial. A urgência de criar memória sobre o que aconteceu. Paira a ideia de que ainda muitos não falaram, ainda há muito que não sabemos.

O que sabemos é que sob o regime autoritário do Estado Novo, aqueles jovens foram enviados para Angola, Guiné-Bissau e Moçambique com o pretexto de defender a pátria. O que é a defender a nação? O que é uma nação afinal? Quem são estas pessoas que se transformam em soldados e partem para matar? Qual é a sua posição? Estas questões fazem eco no presente, com guerras não muito longe. Principalmente quando se fala em reforçar a força militar em Portugal. Quando os militares somos nós, como nos posicionamos?

Não se sai de Os Cadáveres São Bons Para Esconder Minas indiferente. Aqueles corpos que morrem e regressam à vida, sujos, enlouquecidos, falam. Agora resta saber o que fazer com isso.

Ficha Técnica

Dramaturgia: Jorge Palinhos

Encenação: Isabel Craveiro

Interpretação: Afonso Abreu, David Meco, Diogo Simões, João Santos, Teosson Chau

Direção Musical e Preparação Vocal: Rui Lúcio

Cenografia e Figurinos: Filipa Malva

Desenho de Luz: Jonathan Azevedo

Sonoplastia: Nuno Pompeu

Design Gráfico: Paul Hardman

Fotografia: Carlos Gomes

Cabeleireiro: Carlos Gago (Ilídio Design)

Costureira: Albertina Vilela

Operação de Luz e Som: Diogo Figueiredo, Jonathan Azevedo e Nuno Pompeu

Direção de Produção: Isabel Craveiro

Produção Executiva: Cátia Oliveira, João Santos

Montagem: Diogo Figueiredo, Jonathan Azevedo, Nuno Pompeu

Direção Técnica: Jonathan Azevedo

Comunicação: Luís Marujo e Margarida Sousa

Uma criação: Teatrão (2022)