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Tomai lá do O'Neill (SC)

Sandra Cardoso, 16 abril de 2016

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Alexandre O’Neill é um nome incontornável da literatura portuguesa. Popular pelo modo como, na sua poesia, conciliava uma atitude de vanguarda com a influência da tradição literária, tratou temas como a solidão, o amor, o sonho, a passagem do tempo ou a morte e foi exímio na forma como sempre satirizou traços críticos de Portugal e dos portugueses. Assim sendo, e utilizando um humor inteligentemente mordaz (o único capaz de combater o absurdo da vida), retratou o marasmo em que o seu país tinha caído, a terrível organização político-social, o inconformismo conformista das gerações que reclamam sentadas à mesa de um café, confundidos pela “capa ilusória de um mundo burocratizado”… E, num amor já sem qualquer esperança, cantou o “anti-herói” que vive em todos os portugueses, destruiu a imagem de um proletariado heróico, contrapôs-lhe a vida mesquinha e a dor do quotidiano caracteristicamente portuguesas e convidou-nos a rir de nós mesmos, a saber olharmo-nos ao espelho e a refletir sobre a realidade inquietante em que vivemos.

É esta inquietude que, em jeito de antologia poética do escritor, a peça de Filomena Oliveira Tomai lá do O’Neill pretende retratar. E foi com ela que, culminando mais um ano de trabalho, ou melhor, 3 anos de curso, o 3º ano de Teatro e Educação da ESEC produziu mais um espetáculo em co-produção com o Teatrão (Oficina Municipal do Teatro de Coimbra) que já é também a sua casa. Esta apresentação é, contudo, uma reestruturação e inovação desta mesma peça, apresentada há dez anos atrás, inovação esta que é salientada, logo à partida, pelo facto de ser representada por um elenco exclusivamente feminino: um elenco que se pretende afirmar na representação de um mundo maioritariamente de homens, mas também na representação da arte teatral no nosso país.

O espetáculo apresentado decorre entre dois mundos: uma repartição de finanças e uma esplanada de café. O primeiro é um espaço fechado, formal, hierarquizado e, por isso, repleto de regras: exige-se o picar do ponto; o respeito pelos superiores e pelos superiores dos superiores e o respeito pelo tempo: cumprem-se as horas de abertura, as horas de almoço e do lanche ou a hora de pôr a conversa em dia, mas menospreza-se a eficiência no trabalho e as coisas demoram um tempo infinito a acontecer. Esta realidade é representada do lado esquerdo do palco por toda uma estrutura em modo de repartição. Lá encontram-se duas secretarias, cada uma com o material que lhe pertence (destacam-se os instrumentos de época: máquina de escrever antiga, telefone de roda…) e inúmeros dossiers presos aos armários. O segundo espaço, do lado direito e ao ar livre, dá lugar à espontaneidade e a relações que não são de interesse, mas que fluem de acordo com a ordem natural das coisas: contam-se histórias, desabafam-se angústias… Em termos cénicos este espaço é simbolizado por uma bicicleta, uma mesa de café e o balcão da Joaquina, a empregada desse mesmo café. Este balcão serve, a determinada altura da peça, como referência a Paris e a Nora Matriani, a paixão francesa de O’Neill. É perante estas duas realidades opostas e complementares, bem representadas cenicamente, que somos convidados a assistir ao mundo de O’Neill e ao mundo atual.

O espetáculo começa mesmo antes de começar, mesmo antes de o público se sentar confortavelmente. Assim, logo que entramos na sala, entramos também na repartição de finanças: somos imediatamente obrigados a esperar numa fila impreterivelmente alinhada e, só depois, convidados a entrar nesse maravilhoso mundo das burocracias, que nos é apresentado logo à partida com a projeção, no fundo do palco, de um relógio e um aviso “Encerrado das 12h30 às 14h30”. E é mesmo às 14h30 que, à exceção da porteira, tudo pode funcionar. Assim, forma-se uma fila de três mulheres, unidas pela burocracia, que reclamam inutilmente e têm as típicas conversas constrangedoras do “deixa cá fazer conversa enquanto espero” e que são, depois, traídas por uma outra que vem salientar o chico-espertismo, o “nível social” como passaporte para o primeiro lugar da fila e passa à frente de todos aqueles obrigados a viver em função de regras que não são para todos. A partir deste momento, entramos na repartição de finanças e percebemos, se é que não tínhamos já percebido, as regras da casa: o trabalho maquinalmente incompetente e a hierarquia forçada. Esta está na origem de uma cena também ela hierarquizada que prima pelo factor da repetição e consequente comicidade: três mulheres defendem o seu poder ilusório dentro da repartição e ocupam lugares tão altos (não simbolicamente, mas fisicamente) quanto o seu cargo e que entram em cena pela simples e eficaz mudança de um foco de luz de personagem para personagem. Ironicamente, é a funcionária que (por se ter recusado a assinar o ponto) está na origem deste problema que promove a passagem para o mundo de O’Neill, o mundo da bicicleta e da esplanada de café, o mundo da liberdade, mas também do conformismo.

Silvina Silva, a funcionária de repartição, é portanto o veículo para conhecermos a obra e a vida do poeta; é ela que, deslocada do mundo em que vive, lhe conta as suas peripécias, as suas angústias e é ela que aluada, “aprova” os seus poemas e os seus pensamentos sobre o mundo, ditos por um O’Neill mais divertido e descomprometido do que aquilo que se pretendia. Os poemas são ditos num tom demasiado teatral que contrasta com o conteúdo daquilo que é dito e cujo ritmo é, também, quebrado pela projeção de excertos dos seus poemas durante as cenas.

Inundados com os pensamentos e o modo libertador de O’Neill viver (simbolizado pela bicicleta que sempre o acompanha na sua entrada em palco – ele é o “ciclista que pedala, que ped’alma”), somos depois empurrados para a sua paixão com Nora Mitrani, uma surrealista parisiense que conheceu em Lisboa e com quem trocava frequentes cartas de amor. Esta troca é inteligentemente simbolizada em palco, com os dois presentes – Nora no balcão e Alexandre à boca de cena – e com um jogo de luz que vai alternando entre um e outro. Este amor francês acaba com um extraordinário “Adeus português”, quando, por pressão de um familiar, o escritor é chamado à PIDE e coagido a ficar em Portugal. Esta cena é a mais próxima do público, representada à boca de cena, e representa um momento que contrasta com o tom do resto da peça: a luz é fechada e intimidadora, o membro da PIDE encarna bem o seu papel e transforma-se num elemento ameaçador perante, contudo, um O’Neill marcadamente sarcástico.

É com todos estes elementos de repressão política ou burocrática, com a pressão do tempo sempre a passar (projecção quase constante de um relógio a andar), com a inquietação do “inconformismo estéril” representada pelo irritante e simbólico som de uma mosca que entra em cena várias vezes para massacrar que nos vimos ao espelho, que ainda nos reconhecemos em palco. Contudo, percebemos, mais uma vez através de Silvina, que a libertação deste “país maluco de andorinhas”, deste país burocrático é esgotante, enlouquecedora, mas talvez possível. É com a referência aos pássaros e ao seu carácter libertador e à Gaivota de Amália e O’Neill que somos confrontados com isso. E é também com seis O’Neills em palco a apelarem pela garra portuguesa e com um quadro imenso de características do Homem, que a peça nos ordena a saída da inércia. Aliado a tudo isto, há uma crítica à cultura que, ao contrário do que era previsto, não é evidente ao longo de toda a peça, mas apenas no final quando se diz: “Alexandre O’Neill?! Dizem que é poeta! Vamos almoçar! Põe o requerimento dele em diversos!”

As mensagens que a peça transmite são muito fortes e são apenas estas. No entanto, é fácil perceber que o conjunto final poderia ter sido mais bem sucedido: o humor político evidenciado em falas da chefe de repartição (“A sua folha de presenças deve ser comunista; não podia estar mais vermelha”) ou a troca constante de O’Neill por Aníbal (fazendo lembrar o presidente da República), feita por uma das personagens, soa demasiado rebuscado; a música, na última parte do espectáculo, é algo exagerada na sua presença; a constante projeção de excertos da obra de O’Neill ao longo da peça é excessiva e influencia negativamente o ritmo do espectáculo. No que diz respeito ao trabalho das atrizes, este ficou um pouco aquém da densidade que a peça exigia, embora estejamos perante um trabalho de formação. Destaque para o desempenho da atriz Liliana Rodrigues que é, do início ao fim, de uma presença assinalável em palco e que faz de Silvina uma personagem bem construída e a mais densa ao longo da peça. Apesar de tudo, é de salientar o papel importante da estrutura cénica e da luz, extraordinariamente simples, mas muito bem conseguida. Pena o público das quartas-feiras não ter aproveitado melhor esta oportunidade.

Ficha Técnica

Título: Tomai lá do O’Neill

Co-produção: O Teatrão

Autoria e Encenação: Filomena Oliveira

Figurinos: Regina Fernandes e Lúcia Mendes

Desenho de Luz: Jonathan Azevedo

Sonoplastia e Imagem: Paula Alexandra Correia e Liliana Rodrigues

Design Gráfico: Sofia Frazão

Fotografia: Vítor Cunha

Operação de Luz: Mário Pais

Operação de Som: José Miguel Silva

Operação de Imagem: Marisa Ferreira

Construção do Cenário: José Baltazar

Montagem de Luz, Som e Imagem: Alexandre Mestre, Jonathan Azevedo, João Castro Gomes e Rui Capitão

Cabeleireiro: Carlos Gago (Ilídio Design)

Divulgação: Marta Pedrosa

Costureira: Isabel Félix

Produção Executiva: 3.º ano do Curso de Teatro e Educação da ESEC, com a coordenação de Nuno Carvalho (O Teatrão)

Direção de Produção: Nuno Carvalho (O Teatrão)

Elenco: Liliana Rodrigues, Ana Mendes, Marta Pedrosa, Paula Alexandra Correia, Regina Fernandes e Sandra Henriques