O Amargo Santo da Purificação
O Amargo Santo da Purificação é um espetáculo de rua construído pela tribo de atuadores Oi Nois Aqui Traveiz. Foi apresentado durante a programação decorrente das comemorações do Ano do Brasil em Portugal, um projeto que visa fomentar os laços fraternos entre as duas nações. O espetáculo teve como palco o Pátio das Escolas na Universidade de Coimbra. Propunha-se a ser uma experiência singular por se tratar de uma obra construída em outro território e que ganha novos sentidos ao cruzar o Atlântico.
A companhia nasceu na cidade de Porto Alegre (capital do estado brasileiro do Rio Grande do Sul). Tem como principal especificidade ser uma organização baseada no trabalho coletivo onde há uma busca incessante por um teatro que sirva como instrumento de desvelamento e análise da realidade. Um teatro com função social e, nesse espetáculo, tem como ponto de partida “uma visão alegórica e barroca da vida, paixão e morte do revolucionário Carlos Marighella”.
Marighella nasceu no estado da Bahia – Brasil (1911–69), foi um revolucionário brasileiro que lutou contra as ditaduras do Estado Novo e Regime Militar (momentos políticos da história do Brasil – 1937–85). O espetáculo traz uma crítica ácida aos momentos de opressão vividos no Brasil durante o século passado. A encenação pinta-o como um herói popular e retrata sua vida com poesia, música e dança numa linguagem teatral contemporânea. Pensar teatro na contemporaneidade não se configura uma tarefa fácil, pois as produções são cada vez mais híbridas e se utilizam das diversas linguagens artísticas na construção dos mesmos.
A geração de sentido nesta apresentação torna-se assim complexa, pois trata-se de um retrato da realidade brasileira em um determinado período que é descontextualizado quando cruza o oceano Atlântico em direção a Portugal. Possivelmente, seja difícil para os espectadores portugueses compreenderem certos elementos e seus diversos significados, sendo que são utilizados signos da cultura popular brasileira e africana. Como o espetáculo aborda temas (a opressão, a liberdade e o próprio ato teatral) que não são exclusivos da realidade brasileira, e sendo a expressão artística uma linguagem universal, acreditamos que a apreciação estética pode ser experienciada por todos, independentemente de o espectador conhecer ou não as origens da obra.
O início é marcado por um trajeto de caráter mambembe e itinerante, onde o público é convidado a se integrar ao evento por uma personagem que anda sobre pernas de pau, sugerindo uma espécie de alegoria à liberdade. Esta observa os espectadores do alto e convida-os a adentrar ao possível espaço da encenação. O público se desloca de um espaço para outro acompanhado pelos atores que, numa espécie de prólogo, cantam e dançam as poesias de Marighella durante o trajeto. Pode-se dizer que o espetáculo confere uma unidade plástico-visual na união entre as cores, a indumentária e objetos de cena. As cores quentes — o amarelo, o vermelho e o laranja — e as cores pastéis — no tom do bege e castanho — utilizados nos elementos de cena sugerem uma metáfora à terra brasileira, atribuindo diversos significados às unidades de cena. Eles utilizam máscaras africanas e as roupas representam personagens de origens simples presentes no imaginário popular.
A narrativa avança e, com o desenrolar do espetáculo, ressaltam-se as bem executadas partituras vocais e corporais. São utilizados signos que aludem muito bem ao cenário da Bahia. Trazem à cena canções típicas da região e a capoeira, herança dos africanos levados por Portugal para o Brasil no período da colonização.
Após ser apresentado às origens do herói popular, o espectador conhece sua história de amor com Clara, sua companheira. E assim são representados acontecimentos relacionados à opressão no Brasil durante o século XX, como o "Golpe de 64", o "Estado Novo" e, concomitantemente, fatos da vida pessoal do mesmo.
A atmosfera instaurada sugere um teatro nos moldes da commedia dell’arte, com personagens-tipo e arquétipos. A movimentação corporal dos atores sugere uma pesquisa deste teatro praticado na Itália, por volta do século XVI. Sob esta perspectiva, podem-se identificar movimentações cênicas e posturas análogas a personagens como Arlequino, Pantaleone, os innamorati, entre outros. De fato, pode-se dizer que a inspiração na construção dos personagens sofreu influência europeia, e esta escolha apresenta-se coerente ao espetáculo, que também tem caráter popular e cômico.
Há uma linha que marca o espetáculo e apresenta um fluxo de atmosfera decadente. O início é marcado no alto, muito alegre, otimista e movimentado. No entanto, no decorrer, esta linha muda e puxa-o para baixo. São apresentadas cenas densas, caracterizadas pelo pessimismo. As cenas movimentadas e alegres perdem lugar para uma representação agitada, espelho do desespero provocado pelos regimes políticos autoritários.
A dramaturgia coletiva utilizou uma pesquisa aprofundada sobre a vida do revolucionário Marighella, o contexto social e histórico ao qual está inserido. Existem trechos de poesias escritas por ele que são o principal fio condutor da narratividade. O uso de um dispositivo de cena chama bastante atenção: um carro gigante trazendo a poluição e a violência, representando uma espécie de alegoria, onde atores utilizando cabeça de animais como gorilas e ratos oprimem o povo.
A apresentação deste espetáculo em Portugal, no presente momento, é muito pertinente. As mensagens de persistência, garra e força geradas pelo espetáculo proporcionam ao espectador português um gás para continuar com coragem enfrentando as adversidades da vida diante da crise econômica. O sonho idealizado de uma suposta liberdade e felicidade foram bastante valorizados durante a apresentação. E, apesar desta companhia estar em território estrangeiro, os espectadores puderam compreender as mensagens.
Ficha técnica
Encenação Coletiva: Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz
Dramaturgia: criada coletivamente a partir dos poemas de Carlos Marighella
Roteiro, sonoplastia, figurinos, máscaras, adereços e elementos cenográficos: Criação Coletiva
Músicas: Johann Alex de Souza
Atores: Paulo Flores, Tânia Farias, Clélio Cardoso, Marta Haas, Roberto Corbo, Sandra Steil, Paula Carvalho, Eugênio Barboza, Alex Pantera, Jorge Gil, Alessandro Müller, Letícia Virtuoso, Geison Burgedurf, André de Jesus, Paola Mallmann, Mayura Matos, Leila Carvalho, Luana da Rocha, Denise Souza, Pascal Berten, Keter Atácia, Márcio Leandro, Pedro Gabriel, Alessandro Müller, Conrado Menezes e Pedro Lucas
Locução AI-5 e descrição "Clima Cena da Morte": Nilson Asp
Voz das "Lições de Tortura": Giovana Carvalho
Criação da cabeça de Getúlio Vargas: Alessandro Müller
Criação e execução dos triciclos: Carlos Ergo (Ergocentro)
Criação e execução do estandarte “Depor Podre Poder” e colares de Iansã: Margarida Rache
Confecção de figurinos: Heloísa Consul
Execução de crochê das cabeças Marighella: Maria das Dores Pedroso
Preparação dos atores: Capoeira: Ed Lannes (Grupo Zimba); Berimbau: Nelsinho (Grupo Zimba); Saxofone: Zé do Trumpete; Dança Afro: Taila dos Santos Souza (Odomodê)