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[esj1] Enquadramento, Google Earth, maio, 2023 |

O que hoje se conhece como Alta de Coimbra resulta de uma realização urbanística antecipada na visão pessoal de Oliveira Salazar, no prefácio no seu livro de Discursos e notas políticas, II, pg. xx–xxi, para um espaço que vinha, desde o sec. XVI, a ser ocupado por colégios universitários. A Universidade era conhecida como uma das mais antigas do mundo, pelo que não seria difícil impor a sua identidade à cidade. Para esta concretização, foi indispensável uma vasta operação de demolições do aglomerado medieval existente e intensamente habitado, de modo a libertar espaço para o realce que se pretendia dar às novas construções de edifícios nobres, monumentalistas e de carácter monofuncional, dedicados ao “estudo”.
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[esj2] Reitoria da Universidade de Roma, foto de Wikipédia |
[esj3] Oliveira Salazar e a maquete da Cidade Universitária |
[esj4] Maquete com os pórticos e o hospital |

Num processo que se adivinhava longo e doloroso para os locais, sob orientação direta do Ministro das Obras Públicas do Estado Novo, a 14 de abril de 1943, tendo por pano de fundo uma Europa em guerra e arruinada, deu-se o primeiro passo (físico) para uma concretização de uma obra de expoente máximo do regime, que incorporasse a carga simbólica e onde melhor se afirmasse o vocabulário oficial da obra pública, particularmente influenciado pela arquitetura do fascismo italiano. A demolição iniciou-se pelas casas da Rua das Parreiras (localização atual do Arquivo da UC) e, em Agosto do mesmo ano, avançou para a Igreja de S. Pedro (demolida entre o final de 1944 e o princípio de 1945), um templo com origem anterior ao séc. X, embora tendo sido reedificado no primeiro terço do séc. XII e reformado no último quartel do século XVIII.
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[esj5] Panorâmica da Igreja de S. Pedro |
[esj6] Demolição da Igreja |
[esj7] Demolição da Igreja |
[esj8] Quarteirão demolido |

A referência à Igreja de S. Pedro é relevante, uma vez que a sua demolição originou um processo de contestação que se arrastou até 1945. Foi caso único, apesar da quantidade de património de valor histórico e artístico adquirido por particulares ou irremediavelmente destruído por camartelos e picaretas. É precisamente o processo de aquisições que explica a dispersão de vestígios da Alta espalhados pela cidade, muitos deles “salvos” e conservados pelos ex-habitantes da Alta, para quem estes objetos tinham um valor imensurável. Segundo Isabel Anjinho, em coimbramedieval.wixsite.com, o empreiteiro encarregue da demolição vendeu as arcarias das naves ao Colégio Rainha Santa Isabel, cujo destino final seria a capela privativa do colégio (não chegaram a ser colocadas lá, mas encontram-se no atual edifício distinguindo-se facilmente bem pelas suas grinaldas).
Ao contrário da Igreja de S. Pedro, a demolição do que restava do Colégio dos Lóios não mereceu qualquer nota de repúdio pelos locais, até porque, quem se atreveu a opor-se aos procedimentos expropriatórios, acabou espoliado por valores inferiores aos da matriz predial ou foi severamente penalizado. Foi o que aconteceu com Mário Augusto da Silva, professor da Faculdade de Ciências, aposentado compulsivamente em Abril de 1948, por ter afirmado que o regime apenas pretendia obras de fachada monumental para deslumbrar o pacato burguês ou o visitante em digressão turística [3], conforme aliás retrata à época o Diário de Coimbra: “O edifício não tinha valor artístico, nem qualquer outra característica que o recomendasse sob este ponto de vista, salvo, evidentemente, uma grande figura de pedra de S. João Evangelista”. É certo, o desaparecimento de peças e obras de arte do demolido Colégio dos Loios, nomeadamente da estátua de S. João, que coroava a fachada do edifício voltada para o Largo da Feira, originou alguma polémica na cidade. Nuno Rosmaninho, em Poder da Arte - O Estado Novo e a Cidade Universitária de Coimbra, descreve que o padre António Nogueira Gonçalves, fundador do Instituto de História de Arte, numa carta enviada ao Diretor-Geral do Ensino Superior e das Belas-Artes, a 9 de setembro de 1944, informou que a escultura de S. João havia atingido “um preço acima do seu valor real”, defendendo a sua transferência para o Museu Machado de Castro. Em resposta, foi informado que nem o diretor do Museu Machado de Castro, nem o diretor dos Monumentos Nacionais ”fizeram qualquer referência quanto ao seu aproveitamento. Antes pelo contrário, as suas impressões eram bastante diferentes sob o aspecto arqueológico e estético desta estátua”. Apesar do desinteresse das autoridades competentes, a Comissão Administrativa do Plano de Obras da Cidade Universitária, talvez pressionada pela opinião pública, acabou por encetar negociações junto do empreiteiro para adquirir a estátua. Sem acordo à vista, a Sociedade de Defesa e Propaganda de Coimbra também tentou negociar a compra. Certo é que, sem se conhecerem outros pormenores, a estátua acabou noutras mãos, como veremos adiante.
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[esj9] Pormenor do Colégio dos Lóios, encimado pela estátua de S. João |
[esj10] Plano de expropriações para a alta |

Com esta demolição, a periferia da cidade foi obrigada a crescer, de modo a albergar os expulsos da Alta. Para onde foram então os salatinas, ou, começando pelo princípio, quem são os salatinas? A designação salatina era atribuída aos que tinham as suas raízes na Alta de Coimbra. Já os nados e crescidos na Baixa de Coimbra, eram os "chibatas". O limite de território, em tempos mais ásperos, fazia-se no Quebra-Costas e em Sobre-Ripas, numa fronteira onde, com alguma frequência, aconteciam brigas entre os membros dos dois grupos. Os estudantes universitários não faziam a distinção entre estes dois grupos, que, para estes, eram todos futricas (não estudantes).
Fernando Falcão Machado analisa a origem da palavra salatina e associa-a ao bairro latino, à via latina, ao sultão Saladino, aos piratas da cidade marroquina de Salé e ao uso da palavra “saladinos” nalgum discurso encomiástico da bravura das gentes de Coimbra que lutaram ao lado de D. Afonso IV na batalha do Salado. [4] e [5]
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Acerca da Palavra Salatina, por F. Falcão Machado 1 - Primeiramente, regista que não figura em Bluteau (1720), Viterbo (1799), Morais (1813), Faria (1849), Vieira (1874), mas, de facto, se encontra no “Dicionário de Cândido de Figueiredo, nos seguintes termos: Salatino: moiros ou corsários de Salé. 2 - O erudito filólogo (C.F.) foi consultado se conhecia o termo, usado pelos rapazes no dia da procissão dos Passos, tendo sido esclarecido que é assim que os do bairro baixo chamam aos do bairro alto. 3 - Figueiredo diz não o conhecer (o termo) e jura que nunca a salatina lhe chegara aos ouvidos. 4 – Figueiredo... consultou três contemporâneos... Silveira da Mota, Santos Valente, Alberto Teles, e nenhum a ouvira. E conclui tratar-se de vocábulo de gíria muito moderna. 5 - Porém, Joaquim Martins de Carvalho (O Conimbricense)... esclarece que a palavra não é agora muito usada em Coimbra… sempre a ouvira como expressão de uso imemorial na cidade. Pretendeu esclarecer o termo… se salatina não será alteração de bairro latino? 6 - Cândido de Figueiredo, em vez de bairro latino aventa que salatina seja derivação de sala latina. 7 - Intervém a Gazeta Nacional com alegações históricas relativas à propaganda para a terceira cruzada, motivada pela conquista de Jerusalém, em 1187, e supõe que salatinas seja corrupção de Saladinos. 8 - O “Conimbricense” volta à liça, e pergunta se salatinas não provirá de Saletinos, dado que os rapazes de Coimbra se injuriavam classificando-se, mutuamente, de piratas. 9 - Cândido de Figueiredo considera, definitivamente, salatina como alteração de saletino, natural ou procedente de Salé, como figura no seu dicionário. Perante esta argumentação, o autor (J.F.M) “ Há que escolher uma origem mais conforme com a natureza das relações em causa; e ficam em evidência os piratas saletinos de Salé com bem como os ferozes saladinos do temível Saladino.” 10 - O autor (J.F.M.) apresenta uma nova hipótese: “Em 30 de Outubro de 1340 feriu-se a grande batalha do Salado... e na qual tomaram parte muitos combatentes coimbrões. Mais,... D. Afonso IV nobilitou e distinguiu muitos dos que nela se comportaram heroicamente. ... que surgiu em discurso apologético, panegírico de actos e feitos de gente de Coimbra... aí pelos fins do século XVIII ou princípios do século XIX. Quanto às origens das lutas entre garotos da Alta e da Baixa nada se sabe nem quando começaram. |

Para onde foram então viver os salatinas? Os que tinham posses construíram ou adquiriram casas em outros lugares. Os que tinham ordenado suficiente foram para os Bairros do Calhabé e do Loreto, os restantes foram habitar o Bairro do Alto de Santa Clara (4 famílias), o Bairro da Lomba da Arregaça (32 famílias), o Bairro da Fonte do Castanheiro, a Arregaça (100 famílias) e o Bairro de Celas (100 famílias)."
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[esj11] Esquema da Cidade de Coimbra, com as zonas de implementação dos bairros, 1932 [2] |

Estes bairros de realojamento seguiram modelos construtivos de acordo com o perfil sócioeconómico dos seus moradores. Nesse sentido, o desenho do Bairro de Celas corresponde ao modelo de pequena aldeia de casas unifamiliares, mais humildes, onde não faltou o pequeno quintal, de cerca de vinte e poucos metros quadrados, com suporte para uma ou duas árvores de fruto e espaço para o cultivo de subsistências, à luz do modelo britânico de “cidade-jardim”, ou do “bairrozinho” (kleinsiedlungen) importado do programa nacionalista alemão.
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[esj12] Cartografia do sector de Celas, 1932. 1960 e 2010 [2] |
[esj13] Planta de implantação do Bairro Económico de Celas, 1945 [2] |

A sua construção, entre 1945 e 1947, fez-se numa zona erma, junto à Quinta das Sete Fontes (que mais tarde veio a ceder área para urbanização e construção do Hospital da Universidade de Coimbra), em planta circular, em torno de um largo. O projeto foi de Cottinelli Telmo, a realização de Travassos Valdez e os trabalhos de construção foram dirigidos por Costa Maia. No final, foram ali realojados sobretudo os ex-habitantes do “quarteirão” onde foi edificada a Faculdade de Medicina (Largos do Castelo e da Feira, do Marco da Feira e das Ruas Larga, das Colchas, do Rego de Água, Câmara Pestana e dos Estudos).
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[esj14] Bairro de Celas, final anos 40 [2] |
[esj15] Bairro de Celas, 2018 [2] |
[esj16] Bairro de Celas, final anos 40 [2] |
[esj17] Bairro de Celas, 2018 [2] |

Os salatinas encontraram ali melhores condições de vida, incluindo água canalizada ou a electricidade e o compartimento para a higiene pessoal, que até aos anos 40 não existia intrínseco em todas as casas. Mas, em contrapartida, aumentaram as despesas com as rendas, os consumos domésticos e os transportes, uma vez que o local isolado do bairro os afastou do trabalho, de infraestruturas básicas como a mercearia, padaria ou farmácia, tendo inclusive forçado a reconfiguração dos seus hábitos de lazer e das suas vidas em comunidade. Por outro lado, o centro das suas atenções deixou de ser a azáfama da Alta, para passar a ser a vida calma do bairro, onde a maioria dos conflitos já não se faziam entre estudantes ou entre estudantes e futricas, mas no seio das famílias ou entre vizinhos.
O certo é que, na ausência de um debate público onde possivelmente se poderiam ter dicotomizado posições, acabou por prevalecer uma homogeneidade nos conimbricenses e um sentimento de resignação nos salatinas, irreversivelmente afastados da centralidade da cidade e das suas raízes. Contudo, foram parcialmente compensados pelos benefícios que as habitações trouxeram face às rendas compatíveis com as suas posses. Mais, apesar da deslocação para uma periferia descaracterizada, passaram a ter outro conforto a nível habitacional recriado, na medida do possível, à imagem das suas origens. Compreende-se deste modo, que, sem se saber muito bem como, a estátua de S. João tenha acabado nas suas mãos e, por esta via, São João Evangelista tenha sido reconstruído aos pedaços pelos próprios salatinas, na praça central do bairro.
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[esj18] Mulheres do Bairro, anos 50 [2] |
[esj19] Largo de S. João, 2018 [2] |
[esj20] Estátua |
[esj21] Largo de S. João |

Para além desta estátua e de um fragmento da fachada do edifício, ainda rebatizaram as novas ruas com o seu nome antiga na Alta, ao ponto de hoje o GPS conduzir para lá os mais distraídos que se querem dirigir à Alta. São ruas com o mesmo nome, como é o caso da Rua Larga e da Rua dos Estudos. Para além destas, foram ainda batizadas, bem longe do seu lugar original, a rua do Borralho, das Cozinhas, do Marco da Feira, do Forno e do Castelo, que, com a Larga, fazem parte dos “grandes” eixos do bairro que nos levam ao Largo de S. João. Do antigo Hospital dos Lázaros, onde agora se localiza o Departamento de Matemática da FCTUC, salvou-se o portão colocado bem perto do bairro, num dos muros do Centro Hopsitalar de Coimbra, onde ainda se lê no ferro forjado: “Hospitaes da Universidade”.
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[esj22]
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O Bairro de Celas, mais estimado que as ruas da Velha Alta, continuou a ser desenvolvido através de investimento público nos pisos dos arruamentos, no saneamento ou na iluminação do Bairro. A sua integração na cidade também se foi conseguindo paulatinamente e, por ironia do destino, os salatinas tornaram a ficar próximos do ambiente cosmopolita gerado pelos utentes das escolas das ciências da saúde, uma vez que em seu redor foi construído o Instituto Português de Oncologia, a Escola de Enfermagem, os Hospitais da UC e, duas ruas mais abaixo, as novas instalações da Faculdade de Medicina e da Faculdade de Farmácia, o Instituto Nacional de Medicina Legal e o Instituto de Ciências Nucleares Aplicadas à Saúde, a nova biblioteca dedicada a esta vertente de ensino, a residência para estudantes e a respetiva unidade alimentar de cariz social. Noutra direção mas à mesma distância, o novo Hospital Pediátrico.
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[esj23] Bairro de Celas, Google Earth, janeiro, 2023 |
[esj24] Memórias nos muros do Bairro de Celas, univer[sc]idade |

Neste cenário, os testemunhos bairristas indicam que já não conseguem transmitir o sentimento do salatina à geração sucedente, entretanto espalhada pela cidade, que também se expandiu em redor do bairro. Assim, sobraram os fragmentos salvos dos escombros e a toponímia, a caracterizar a troca de uma vida por emoções e valores reconstruídos num minúsculo mundo centrado numa estátua datada de 1638, que faz prolongar uma memória e outra configuração, um tempo e outro espaço, a um sentimento de pertença que nunca residiu ali.



| O Colégio dos Lóios (São João Evagelista) |


Reportagem sobre evento “Fragmentos da Antiga Alta de Coimbra”, Escola Superior de Educação de Coimbra / RTP2, 2014


Outros autores:
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Ricardo Figueiredo, em Penedo d@ Saudade, de Zé Veloso [1]
Fontes:
-
António Franco, Os Salatinas, in http://oponney.pt/coimbra/os-salatinas/;
-
Fernando Falcão Machado, Acerca da palavra Salatina (“Revista de Portugal”, Série A: Língua Portuguesa, volume XXII, n.º 157, julho 1957, págs. 249-253);
-
Maria João Ramos, Identidade e Memória - O Bairro Económico de Celas, Coimbra, Dissertação de Mestrado Integrado em Arquitetura apresentada à Faculdade de Arquitetura da UP, orientada e co-orientada por Marta Rocha e José António Bandeirinha, 2018 [2];
-
Mário Torres, Salatinas, in http://oponney.pt/coimbra/salatinas/;
-
Nádia Paim Duarte, Fragmentos - Reunião das memórias dos últimos Salatinas da Velha Alta de Coimbra, Dissertação de mestrado em design e multimédia FCTUC, orientada por Nuno Coelho, setembro de 2013;
-
Nuno Rosmaninho, Poder da Arte - O Estado Novo e a Cidade Universitária de Coimbra, Imprensa da UC, 2006;
-
Nuno Rosmaninho, Cidade Universitária de Coimbra. Património e exaltação, Revista Portuguesa de História – 45, Coimbra, 2014;
-
Susana Constantino, Coimbra e o valor identitário da retórica do Estado Novo, Dearq, núm. 21, pp. 64-76, 2017, Universidad de Los Andes, in https://www.redalyc.org/journal/3416/341653836007/html/.


Paulo Simões Lopes, maio de 2023
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