A vida sem privacidade
A maioria das pessoas não parece muito preocupada com a perda de privacidade.
Em https://expresso.pt/opiniao/2022-12-09-A-vida-sem-privacidade-18af4c5a
As tecnologias digitais dão-nos acesso a cada vez mais dados e informação. Grande parte desses dados somos nós que os fornecemos. O uso que deles se faz merece mais atenção do que lhe damos.
Oferecemos em permanência informação sobre nós próprios: do que gostamos, com quem interagimos, onde estamos, as nossas expressões faciais, os nossos movimentos corporais, os nossos dados biométricos, e muito mais. Toda esta informação é recolhida, comprada e vendida por empresas especializadas, e cruzada com outras fontes de informação sobre nós. Depois é tratada com métodos analíticos, com o objetivo de conhecer os nossos hábitos, os nossos valores, as nossas preferências, o nosso estado de saúde, o estado das nossas finanças, os nossos desejos e medos. O objetivo, quase sempre, é antecipar os nossos comportamentos e influenciar as nossas decisões.
A maioria das pessoas não parece muito preocupada com a perda de privacidade. Consciente ou inconscientemente, aceitamos expor aspetos da nossa vida e da nossa intimidade que no passado recente seriam impensáveis. Em parte, porque nos é cómodo: valorizamos os serviços a que acedemos, muitas vezes de forma gratuita, em troca de informações sobre nós próprios. Em parte, porque confiamos, ou queremos confiar, no uso que fará dessa informação quem a ela tem acesso. Em parte, também, porque só percebemos o valor da privacidade quando a falta dela é usada contra nós. E porque ainda não sabemos bem como isto altera a forma de vivermos em sociedade.
Uma face visível da transformação em curso é a relação de dependência que estabelecemos com as tecnologias digitais. Essa dependência não resulta de uma propensão natural para passarmos horas a fio a olhar para um retângulo e a deslizar os dedos numa superfície suave, para ver imagens, ouvir sons e deixar likes e emojis de forma compulsiva no ciberespaço. O negócio das plataformas digitais depende do tempo que gastamos nelas — e elas usam tudo o que sabem sobre nós para nos levar a prolongar esse tempo.
Não são só aqueles que vivem da publicidade que nos manipulam ou podem manipular. A denúncia de Edward Snowden sobre a vigilância de milhões de cidadãos pela Agência Nacional de Segurança dos EUA, o sistema de créditos sociais na China (onde cada cidadão ganha ou perde direitos por aquilo que faz em público ou em privado) ou o caso Cambridge Analyitica (em que informações detalhadas sobre os cidadãos foram utilizadas para influenciar as intenções de voto que conduziram ao ‘Brexit’ ou à vitória de Trump) servem para nos lembrar que a vida pós-privacidade se estende a esferas cada vez menos inócuas das nossas sociedades.
As vantagens potenciais das tecnologias digitais são múltiplas, sem dúvida. Os seus riscos também e incluem o isolamento social, comportamentos aditivos, reprodução de discriminações várias, o aumento das desigualdades, a concentração do poder, a manipulação da opinião pública ou o aumento da polarização social. Perder a privacidade não é apenas expor-nos para lá do razoável. É transformar o nosso modo de vida para lá do que imaginamos. Falta-nos discutir se é isso mesmo que queremos — e o que podemos fazer para o evitar.
Ricardo Paes Mamede
Economista, diretor ISCTE-Sintra – Escola de Tecnologias Digitais, Economia e Sociedade.