O documentário Futebol de Causas Da semente ao fruto
Ricardo Martins *
Futebol de Causas é um documentário cinematográfico que pretende informar, preservando para memória futura, o papel desempenhado pelos jogadores da Secção de Futebol da Associação Académica de Coimbra (AAC) nas crises académicas da década de 1960. Assim, os principais destaques da narrativa são os anos de convulsão estudantil 1962 e 69, os quais se complementam com o episódio de 1974, em que, como consequência da revolução de 25 de Abril e os seus valores condutores, a Secção de Futebol da AAC é extinta.
A narrativa de Futebol de Causas estende-se ao longo de 70 minutos sustentada nas entrevistas dos principais personagens históricos e enredada e ilustrada por imagens de época e de arquivo, de onde se destacam as fotografias da Colecção Formidável
– Imagoteca da Câmara Municipal de Coimbra, e das sequências de vídeo do arquivo de imagens da Rádio Televisão Portuguesa (RTP). Destaco os contributos de viva voz dos principais actores históricos, como Alberto Martins e Celso Cruzeiro, da análise e interpretação de Laborinho Lúcio, ou o testemunho dos jogadores Mário Wilson, José Belo, Mário e Vítor Campos, Mário Torres, Rui Rodrigues, Jorge Humberto e, também, Manuel António, o melhor marcador do Campeonato Nacional em 1969, superando Eusébio.
Com este documentário, o meu objectivo como realizador foi relevar historicamente o contributo incontornável e decisivo dos jogadores de futebol da Académica nas contestações estudantis e o seu impacto e influência na revolução dos cravos.
Inocentemente, quando me propus desenvolver este projecto, estava longe de adivinhar e de imaginar o impacto que iria ter. Admito que parti para o projecto com a sensação que seria um marco simbólico e de espólio importante para a Académica, mas apenas isso. Longe de mim imaginar que estaria a trilhar por campos virgens, muito menos que estava a preencher lacunas históricas no que toca à antecâmara do 25 de Abril. Inicialmente, pretendia fazer apenas uma certa justiça histórica aos jogadores e divulgar as acções, atitudes e carácter destes homens e a forma como se posicionaram, pessoal e politicamente, nas crises académicas e, no fundo, procurar comprovar de certa forma a minha teoria do seu contributo, mais directo ou indirecto, para o abrir de mentalidades do povo português para a realidade social, económica e política do nosso país então pastoreado a chicote por um regime inflexível.
Num país amordaçado pela censura, marcado por taxas de analfabetismo gritantes, era a voz dos estudantes que mais se fazia ouvir. Aproveitando as condições únicas da cidade de Coimbra, os estudantes absorviam, nas suas práticas quotidianas, as vantagens de terem acesso à informação, ao ensino e à cultura, mas principalmente por estarem inseridos numa comunidade numerosa, jovem e socialmente democrática, o que proporcionou aos estudantes a troca de experiências, conhecimentos e ideias, a que de outra forma não poderiam aceder no seu processo de crescimento como Homens e sujeitos pensantes. Coimbra gozava de condições ímpares na realidade ditatorial do país e afigurava-se como uma verdadeira ilha de liberdade. Neste contexto, também os próprios jogadores da Académica eram estudantes e acediam a todo o processo de enriquecimento pessoal e colectivo que os estudos, e o convívio, lhes proporcionavam e que contribuía para o seu posicionamento social e político activo e a sua afirmação pessoal como “intelectuais”. Deste modo, não admira a forma cúmplice como os jogadores se foram posicionando activa e solidariamente ao lado dos seus colegas nas suas disputas e reivindicações nos mais diversos episódios da luta estudantil. Reconheço que a motivação que me fez arrancar com o projecto era mais academista e menos académica.
A semente foi lançada logo nos primeiros jogos a que assisti, ainda criança, em que percebi que a Académica era de facto uma instituição diferente. Mas, diferente porquê? Foi em busca dessa resposta que me debrucei ao longo da adolescência e juventude e que procuro, em parte, responder com o Futebol de Causas. A preparação e a investigação prévias iniciaram-se no final de 2004 e a primeira pedra da feitura do documentário foi lançada em Outubro de 2008. Entretanto fui confrontado, ao longo do processo, com a dura realidade da finitude da vida dos agentes históricos. Vi partir, com muita tristeza, figuras com quem contactei, privei e que se preparavam para dar também o seu contributo; casos de Carlos Alhinho, Ernesto, Carlos Candal, João Mesquita – este último destacaria por todas as lições éticas e modo de estar que me ofereceu nos últimos anos – e Gervásio, capitão da Briosa na final da Taça de 1969.
A recolha de elementos factuais, que servissem de sustentabilidade à tese a apresentar, teve as mais diversificadas proveniências, como a Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, passando pela internet, a Imagoteca da Casa Municipal da Cultura de Coimbra, fotógrafos tradicionais da baixa de Coimbra, e, naturalmente, o arquivo da RTP.
A minha principal ferramenta de trabalho passou a ser o livro Académica: História do Futebol de João Santana e João Mesquita, frequente acompanhante debaixo do braço para onde quer que fosse. No que toca ao cinema, a minha experiência passava apenas por uma figuração especial num filme do cineasta António Ferreira. De resto, no que toca a realização, a minha experiência era nula. Lembrei-me então de apresentar a ideia ao António e esperar que ele estivesse disposto a assumir a realização. Foi o próprio que me sugeriu que fosse eu mesmo a realizar, enquanto ele assumia a produção e execução, disponibilizando-me para o efeito todos os meios. Foi a primeira vitória do documentário. O selo ZED Filmes era a garantia que a expedição ia chegar a bom porto. Não é fácil partir para o terreno com a tarefa de compilar os materiais para uma obra desta envergadura. Apesar de, em regra geral, toda a gente ter sido muitíssimo prestável e atenciosa, não me furtei das desconfianças e suspeições iniciais que qualquer desconhecido, e acima de tudo jovem, está sujeito numa iniciativa destas. Terá mesmo sido essa a principal dificuldade com que deparei em todo o processo. Até conseguir alguma credibilidade das diversas entidades e confiança por parte dos entrevistados, foi penoso. Hoje tenho o privilégio de ser amigo de todas estas personalidades, as quais já eram ídolos de infância.
Reputo de grande importância para a consistência do documentário os pressupostos teóricos que adquiri na frequência universitária, primeiro em Direito depois em Jornalismo. Não posso mesmo deixar de destacar a influência decisiva que o professor Fausto Cruchinho teve para incutir em mim esta aventura do documentário.
Ao longo da formação académica deparei com certos conceitos e modelos que, depois na prática, vi desmontarem-se com grande desilusão da minha parte. Aprendi que o documentarista é isento, imparcial, dá uma visão fria e factual sem se envolver com a temática e a teoria que apresenta. Com o tempo, percebi que isto não só não se aplicava à realidade do bom documentário a nível mundial, como a questão da imparcialidade não existir em nenhum grupo social ou profissional. Mesmo tomando como exemplo o jornalismo, rapidamente verificamos que nos entram em casa todos os dias situações de auto-condicionamento, auto-censura e parcialidade. Aquilo que escrevemos, dizemos ou pensamos é, invariavelmente, influenciado pelo grupo social a que pertencemos, o nosso estatuto económico, a nossa nacionalidade, a educação que temos, os valores que nos formam, a religião que temos… Isto num plano de input, pois no plano do output, condicionamo-nos ao destinatário a que nos dirigimos ou até nos auto-censuramos voluntariamente, procurando não chocar o chefe de redacção, o nosso patrão ou o nosso público. Um facto que se apresenta é sempre condicionado por todos estes pressupostos. Isto explica a volatilidade da história, a interpretação que dela fazemos e a polémica em Futebol de Causas.
* Autor do documentário