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Camões, Poeta Internacional

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FL

Frederico Lourenço

Faculdade de Letras e Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra

Ao celebrarmos o 5.º centenário do nascimento de Luís de Camões, há duas perguntas que devem, a meu ver, fazer parte do leque de temas a abordar. A primeira é: o que explica o facto de Camões não encontrar atualmente, fora do mundo lusófono, leitores na quantidade e qualidade que nós, lusófonos, pensamos que ele mereceria?

A segunda pergunta decorre da primeira: como tornar Camões «indispensável», hoje, para um público estrangeiro culto? Porque é sobretudo no âmbito de leitores internacionais cultos que surpreende a desatenção relativamente a Camões. Claro que todos ouviram falar em Camões; todos sabem que é o autor que ocupa na cultura portuguesa o mesmo lugar de Shakespeare na inglesa ou de Dante na italiana. Mas tenho-me perguntado muitas vezes quais serão as razões que fazem do chamado «Vate» do povo português um autor tão pouco lido no âmbito internacional.

Certamente não é por falta de traduções. A primeira tradução d’Os Lusíadas para inglês é de 1655. No século XVIII, em 1735, saiu a primeira tradução francesa. A primeira tradução alemã do poema saiu um pouco mais tarde, em 1806. A língua castelhana já se tinha antecipado a todas elas, dado que a primeira tradução espanhola saiu logo em 1580, o ano da morte de Camões. Em italiano, publicou-se a primeira tradução no século XVII, em 1659.

Portanto, não é a dificuldade de acesso ao texto camoniano em tradução que explica o desinteresse internacional pela leitura d’Os Lusíadas, porque a obra-prima camoniana está disponível, há séculos, em espanhol, italiano, inglês, francês e alemão. O problema está antes, a meu ver, nas características da própria epopeia camoniana. Numa tradução italiana d’Os Lusíadas publicada em Turim em 1772, Camões é descrito como «Luigi di Camoens, chiamato per la sua eccellenza il Virgilio di Portogallo». Já em 1710, o alemão Heinrich Scherer, num Atlas escrito em latim, chamava a Camões o Virgilius Lusitanus. Ora, esta comparação com Vergílio pode revelar-se problemática.

Não havendo dúvida de que a comparação coloca Camões no cume do prestígio literário, trata-se ao mesmo tempo de uma comparação que levanta problemas nos dias de hoje, porque aquilo que admiramos hoje na Eneida de Vergílio já não é o que era admirado nos séculos passados. A leitura que se fazia então da epopeia vergiliana prezava, acima de tudo, a forma como ela glorifica a missão do império: nessa leitura, o destino universal de Roma era visto positivamente como a imposição no mundo da cultura romana, imposição essa em que a guerra e a conquista eram aceites como os meios necessários para estabelecer a «civilização». A mensagem imperialista da Eneida era vista como a sua principal mais-valia; e essa leitura manteve-se até ao século XX (e, em Itália, foi muito incentivada pelo ditador Mussolini).

A partir da segunda metade do século XX, porém, começou a desenvolver-se outra abordagem à Eneida: uma abordagem que partiu do seio dos Estudos Clássicos em universidades americanas como Harvard e outras, onde latinistas contemporâneos da Guerra no Vietname começaram a perguntar se a obra-prima vergiliana se resumia apenas a propaganda imperialista, ou se havia outros elementos no poema que o podiam tornar relevante na segunda metade do século XX, altura em que as ideologias imperialistas estavam cada vez mais sujeitas à crítica dos intelectuais.

Na mesma altura em que estes estudiosos americanos e britânicos tentavam resgatar Vergílio do estigma de «poeta imperialista», estava Portugal a travar uma Guerra Colonial em África. Portanto, o renascimento dos estudos vergilianos nos anos 1960 não teve eco em Portugal no âmbito dos estudos camonianos, porque a leitura salazarista de Camões queria acima de tudo salvaguardar a feição patriótica d’Os Lusíadas e manter a leitura obrigatória do livro nas escolas e universidades sob o prisma da justificação do império ultramarino português.

Depois do 25 de Abril, veio inevitavelmente a necessidade de olhar para Os Lusíadas com outros olhos. E viu-se que Camões abre espaço no seu poema para diversos olhares sobre Portugal e sobre a expansão portuguesa em África e na Ásia; viu-se que ele dá voz a personagens que, em África e na Índia, falam sobre os portugueses em termos negativos. O contraditório do imperialismo português está tão presente n’Os Lusíadas como o seu enaltecimento.

Quando em África um Mouro «sábio» (1.77) se refere aos portugueses como «cristãos sanguinolentos, / que quase todo o mar têm destruído / com roubos, com incêndios violentos», esta realidade por ele descrita corresponde à verdade histórica tal como ela nos é relatada por João de Barros e outros cronistas do século XVI. Quando Camões põe o mesmo Mouro em África a dizer que a intenção dos navegadores portugueses é «nos matarem e roubarem, / e mulheres e filhos cativarem», está objetivamente a descrever o que de facto aconteceu durante os «Descobrimentos».

O contexto em que Camões faz soar estes factos históricos é ficcional (e mesmo o Mouro antes referido é um disfarce do deus Baco), mas a sua objetividade histórica — que historiadores contemporâneos de Camões como João de Barros e Diogo do Couto não silenciaram — obriga-nos a pensar naquilo que a presença de tais passagens no poema traz para a compreensão global da epopeia camoniana. Do mesmo modo, quando Vasco da Gama e as suas naus chegam finalmente à Índia, os adivinhos e áugures locais avisam o seu soberano de que a chegada dos portugueses trará «jugo perpétuo, eterno cativeiro» (8.46).

Parece óbvio que estas passagens nos causam dificuldades quando queremos convencer um público estrangeiro da genialidade da epopeia camoniana. Compreende-se, assim, que a estratégia mais habitualmente adotada quando intelectuais portugueses querem dar a conhecer Os Lusíadas no estrangeiro seja de pôr o enfoque noutros aspetos.

Ainda depois do 25 de Abril, houve dois leitores de Camões que se esforçaram especialmente por interessar um público internacional pela epopeia camoniana, em especial o público francófono. Foram dois intelectuais portugueses que muito admiro: Eduardo Lourenço e Vasco Graça Moura. Este último foi convidado a escrever o Prefácio à tradução francesa d’Os Lusíadas na editora Gallimard. Ora, este prefácio funciona como uma capa idealizada que Graça Moura colou em cima do poema — capa essa que dá a imagem daquilo que ele gostaria que o poema fosse: o poema que ele gostaria de poder apresentar ao público francês.

E qual é o problema de colarmos em cima d’Os Lusíadas uma capa idealizada daquilo que gostaríamos que o poema fosse? O problema é que os leitores que se derem, de facto, ao trabalho de ler a epopeia camoniana vão perceber a discrepância entre a imagem idealizada que os estudiosos portugueses querem apresentar e a realidade do texto. Na secção do seu prefácio a que Graça Moura deu o título «O profeta» (Le prophète), os leitores francófonos podem ler que (traduzo de francês para português): «O cantor das grandes descobertas e da epopeia do homem moderno não perde de vista os dois objetivos principais da expansão marítima: a propagação da fé, que é preciso ver não apenas como ideal de cruzada inspirado pela ameaça otomana às portas orientais da Europa, mas também como a difusão de uma cultura própria do continente europeu; <sendo o segundo objetivo da expansão> o comércio organizado à escala mundial, para benefício de todos os povos. Camões soube ser duplamente poeta europeu».

A ideia que Graça Moura apresenta — a de que o objetivo das descobertas portuguesas é «o comércio organizado à escala mundial, para benefício de todos os povos» — é desmentida pelo próprio poema. Graça Moura cita a estância 62 do Canto 7 para apoiar o seu argumento, que faz parte do discurso que Vasco da Gama dirige ao soberano indiano quando os portugueses chegam à Índia.

Mas as palavras de Vasco da Gama nessa estância constituem a apresentação oficial, perante um destinatário indiano, das intenções de Portugal na Índia: paz, amizade, comércio para proveito de todos. O que Graça Moura não incluiu no seu prefácio foi a passagem, no canto seguinte, que foca não as palavras de Vasco da Gama, mas sim os seus pensamentos. Ouçamos o que o narrador nos informa no Canto 8: «Mas o Gama, que não pretende mais, / De tudo quanto os Mouros ordenavam, / Que levar a seu Rei um sinal certo / Do mundo que deixava descoberto, // Nisto trabalha só: que bem sabia / Que, despois que levasse esta certeza, / Armas e naus e gentes mandaria / Manuel... / Com que a seu jugo e Lei someteria / Das terras e do mar a redondeza» (8.56-57).

Portanto, o Gama sabe muito bem que a intenção de Portugal não é «o comércio para benefício de todos os povos» (na expressão idealizada de Vasco Graça Moura), mas sim o comércio para benefício de Portugal, baseado na força das armas.

Quando comparamos Os Lusíadas com as grandes epopeias da Antiguidade Clássica, o poema português parece afigurar-se menos universal. Como poema de guerra, a Ilíada carrega uma mensagem sobre a tragicidade do sofrimento humano que é válida em todas as épocas. A Odisseia narra aventuras e viagens marítimas (tal como Os Lusíadas), mas o objetivo da viagem na Odisseia é o regresso a casa de um soldado que sofreu dez anos na guerra e depois mais dez anos de errância. O potencial para a história da Odisseia ser lida universalmente como alegoria da vida humana é enorme. Na primeira parte da Eneida, refugiados de guerra sofrem perigos no Mediterrâneo para chegarem a Itália: esta história escrita há 2000 anos é tão válida hoje como era no tempo da Roma antiga. A passagem dos séculos não diminuiu o valor universal destas epopeias antigas.

Camões alega n’Os Lusíadas que escreveu uma epopeia que supera as de Homero e de Vergílio, mas na verdade o seu tema não tem o alcance universal das três obras-primas da Antiguidade. A viagem dos seus heróis não é uma viagem de regresso a casa como a da Odisseia; nem é uma viagem de emigração para fugir da guerra como é a da Eneida: a razão da viagem de Vasco da Gama é puramente comercial. Não tem um alcance ético universalista e não visa melhorar a vida de africanos ou indianos: visa somente beneficiar o Rei de Portugal. Esta é a principal razão que explica a dificuldade em seduzir para a leitura de Camões um público leitor internacional.

Como despertar a curiosidade desse público internacional? Não é certamente projetando uma imagem idealizada d’Os Lusíadas, que depois na prática não corresponde à realidade do poema. Numa época como a nossa, em que somos chamados a olhar de frente para os problemas do colonialismo, o poema de Camões tem todas as qualidades necessárias para funcionar como ponto de partida para uma discussão profícua sobre ideologias imperialistas. É um poema que foi escrito numa época em que o imperialismo não era posto em causa: era o projeto assumido das potências europeias, que competiam na exploração dos recursos materiais e humanos de África, das Américas e da Ásia. Não se esperaria que um poema escrito no século XVI fosse capaz de pôr em causa a ideologia do próprio século XVI. No entanto, é isso que Camões faz.

Assim, penso que quando nós, portugueses, falamos de Camões e da sua obra-prima no estrangeiro, e focamos a crítica a Portugal que faz parte d’Os Lusíadas, não estamos a cometer um crime de lesa-pátria, mas estamos a apresentar o nosso maior escritor de uma forma que o torna relevante e até indispensável para os dias de hoje.