Amílcar Falcão
A palavra poíesis, derivada do verbo grego poiein, que significa simplesmente «fazer» ou «construir», pode englobar, na sua riqueza semântica, qualquer forma de criação ou construção. Mais do que um conceito técnico ou erudito, poíesis exprime assim a essência da criatividade e da inovação, capacidades que têm marcado profundamente a história da Universidade de Coimbra (UC) ao longo dos séculos.
Neste ano de 2025, em que convergem efemérides tão importantes para Portugal, para a Lusofonia e, em específico, para a UC, como acontece com os 700 anos da morte d’el Rei D. Dinis, os 735 anos da fundação da Universidade, por ele criada, e os 500 anos do nascimento de Luís de Camões, celebrar a poesia no âmbito da XXVII Semana Cultural constitui mais do que uma simples escolha temática: representa um público testemunho do compromisso da UC com a sua vocação de criar, transformar e inspirar. Com efeito, a capacidade da UC para se reinventar e inovar continuamente constitui a própria expressão viva de poíesis, mostrando como a experiência e a antevisão do futuro devem caminhar juntas na construção de um legado cultural e intelectual.
A UC tem muitas tradições que lhe são associadas. Hoje, são tradições, mas tempos houve em que foram inovações. E é por termos argumentos que fundamentam as nossas tradições que as devemos respeitar.
Algumas das nossas tradições resultaram de decisões extraordinariamente vanguardistas para a época. Entre muitas que poderia enumerar, não posso deixar de enaltecer o uso do traje académico como forma de diluir o estatuto social dos estudantes. Ao contrário do que vemos por outras paragens, o nosso traje académico não é colorido nem pretende chamar a atenção. É discreto, e tem uma capa que pertence ao traje não por fruto do acaso. No passado, muito estudantes usavam a capa como abrigo, não só da chuva, como manda a tradição, mas também e, especialmente, para aguentarem as noites mais frias que por vezes tinham de passar (chegou para muitos a funcionar como manta para a sua cama). Portanto, na UC, o traje académico foi uma marca de democraticidade que enviava sinais muito arrojados para a época. Hoje, o traje entra no lote das tradições, mas a inovação que esteve na sua origem não pode nem deve ser ignorada ou esquecida.
Testemunhei com mágoa a falta de consideração das autoridades (várias, diga-se) pelo significado que a Serenata Monumental tem para com a nossa comunidade académica. Usarem-se argumentos absurdos ou fazerem-se exigências de última hora para evitar uma tradição académica dá-me vergonha alheia. Insinuar-se que um momento alto da tradição académica pode ser no Largo da Sé Velha ou no parque de campismo também me dá vergonha alheia. Nada é imutável, mas deixem aos estudantes a tomada de decisões que mexem com o orgulho de pertencerem à nossa academia.
Qualquer dos exemplos que dei (traje académico e Serenata Monumental), além das suas origens e significado para a academia, constituem-se como parte integrante da classificação conferida pela Unesco (2013) da UC, Alta e Sofia como Património da Humanidade. E essa classificação, que apenas cinco universidades espalhadas pelo mundo se podem orgulhar de deter, somente no caso da UC envolve a componente material e imaterial. Portanto, adulterar tradições que fazem parte da classificação da Unesco não só é insensato, como pode fazer perigar a própria distinção que nos foi concedida.
Sinto-me muito à vontade para falar sobre estas temáticas. Devo ser, provavelmente, o reitor menos formal que a UC conheceu ao longo da sua história. A minha informalidade corresponde a uma adaptação aos novos tempos. O respeito e a autoridade não se impõem, conquistam-se. E em democracia, não se conquistam pela força, merecem-se pelo exemplo.
A UC pretende ser um exemplo vivo de uma instituição secular, sempre com os olhos postos no futuro. Temos a Ação Social mais forte e estruturada do país, e isso levou décadas a construir. Temos uma Associação Académica centenária, cuja voz e intervenção cívica só podem ser respeitadas e aplaudidas. Assumimos os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) inscritos na Agenda 2030 das Nações Unidas, muito antes de se terem tornado numa moda. Cultivamos valores humanísticos por opção, sendo intolerantes com a intolerância. Não falamos de cidadania, igualdade e inclusão — pomo-la em prática.
A nossa dinâmica na investigação e na inovação demonstra que é possível respeitar o passado, cultivar valores humanísticos, e estar na vanguarda de muito do que melhor se faz em Portugal e no mundo. E os sinais são muito claros. Numa década, passámos de uma universidade dependente do financiamento nacional (Fundação para a Ciência e Tecnologia/FCT), para a universidade cujo financiamento competitivo está maioritariamente assente em projetos internacionais (basta consultar os números do Horizonte 2020 e do atual Horizonte Europa). Nessa mesma década, conseguimos que todas as áreas do saber (todas as Faculdades) passassem a ter financiamento europeu. Aumentámos de forma sustentada o envolvimento com o tecido empresarial (em todas as suas vertentes: estágios, projetos de I&D, e empregabilidade). Sabemos, hoje, o que são royalties provenientes das nossas patentes (depois de andarmos muito tempo sem ver qualquer retorno desse importante ativo da UC).
Quando um dia se fizer a história da pandemia (COVID 19), as surpresas serão mais do que muitas. Quando se dizia que o vírus estava longe (na China), já nós estávamos a preparar a sua presença no nosso país. Quando entendemos que era o momento, passámos ao regime não presencial (tendo sido enormes as pressões sofridas por o estarmos a fazer, não obstante dias depois o próprio país ter chegado a essa conclusão). Implementámos o take-away nas nossas cantinas (nunca as tendo fechado). Montámos o nosso laboratório de alta segurança para despistar os casos positivos (24 horas/dia 365 dias/ano). Fizemos rastreio à comunidade académica, tendo evitado muitos surtos. Ajudámos lares e escolas da região. Demos apoio aos nossos hospitais. Protegemos as pessoas até ao limite do possível.
Simultaneamente, procedemos a uma desmaterialização sem precedentes. Desenvolvemos software proprietário que nos permitiu enfrentar a pandemia e sair dela mais bem preparados para o futuro. Temos, hoje, opções que não tínhamos e que nos abrem portas a novos modelos de ensino- aprendizagem, incluindo o processo de avaliação. Tudo isso envolvendo um esforço coletivo notável.
Infelizmente, depois de uma pandemia, vieram os conflitos militares. Sabemos como começam, nunca sabemos como acabam. Aquilo que sabemos é que, efeitos colaterais à parte (ex. preço da energia, migrações, dificuldade na aquisição de bens e serviços, etc.), temos continuado a desempenhar aquele que deve ser o nosso papel: apelar à paz entre os povos, apoiar os refugiados, manter e criar pontes, usando para isso as nossas ferramentas (ensino, investigação e partilha de conhecimento).
Num contexto geopolítico tão instável, cumpre-nos manter o rumo, estar atentos ao que se passa e, dentro do possível, antecipar os cenários futuros e a forma como a UC se deve posicionar. Mostrámos ser capazes de o ter feito ao longo da nossa história. Seremos certamente capazes de o continuar a fazer. E é esta atitude que distingue as instituições dinâmicas e inovadoras das restantes.
Usemos como inspiração o nosso fundador, el Rei D. Dinis, o Rei-Poeta, e sejamos capazes de estar à altura de preservar e perpetuar o seu legado.