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O Rosto de um Rei

≈ 26 minutos de leitura
EC

Eugénia Cunha

Centro de Ecologia Funcional, Laboratório de Antropologia Forense, Departamento de Ciências da Vida, Universidade de Coimbra Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, IP
MF

Maria Teresa Ferreira

Centro de Ecologia Funcional, Laboratório de Antropologia Forense, Departamento de Ciências da Vida, Universidade de Coimbra
SG

Saul Gomes

Departamento de História, Estudos Europeus, Arqueologia e Artes, Universidade de Coimbra
MA

Maria Antónia Amaral

Divisão do Cadastro, Inventário e Classificação do Património Cultural, I.P.

Representações políticas de um rei

São várias as obras artísticas pertencentes ao património da Universidade de Coimbra (UC) que retratam o Rei D. Dinis ou que o recordam enquanto protagonista do passado fundacional da instituição. A sua pintura na Sala dos Capelos, do século XVII, ou a estátua colossal na Praça com o nome do soberano, no final da Rua Larga, do século XX, são duas das mais icónicas e reproduzidas imagens deste soberano

falecido precisamente há 700 anos. Em 2025, a UC enriquece-se com uma nova representação do sexto rei de Portugal, fruto dos avanços científicos e tecnológicos contemporâneos que permitiram reconstituir, em escultura digital, o seu rosto autêntico.

As representações de um rei, em vida ou na morte, correspondem sempre a uma projeção com teor político e significados simbólicos. Representam-se, pelas diversas manifestações artísticas, figuras idealizadas mais do que corpos reais. Acautelar a memória eterna de um rei, procurando a perpetuação do seu legado e a legitimidade da sua dinastia, obrigava-o, por via de regra, a organizar, ainda em vida, o complexo palco teatral que lhe garantiria a sobrevivência mística, além das contingências biológicas e físicas. Construíram-se capelas funerárias, talharam-se túmulos, esculpiram-se e pintaram-se imagens dos decessos, gravaram-se epitáfios, teceram-se tapeçarias e panos ornamentais adequados, dotaram-se essas capelas funerárias com ricas alfaias litúrgicas e paramentaria, estipularam-se rigorosos protocolos exequiais. Após o falecimento, os cadáveres reais eram, com a celeridade possível, devidamente tratados, amortalhados e colocados nas respetivas urnas com o espólio funerário e votivo pertinente a uma figura real.

Os monarcas portugueses dos tempos medievais escolheram, por norma, mosteiros para lugares de sepultura. Santa Cruz de Coimbra, Alcobaça, Odivelas, primeiramente, preferindo, as gerações reais que sucederam aquelas, os novos conventos mendicantes franciscanos e dominicanos. Por 1325, quando faleceu D. Dinis, tornara-se já claro que a sua última morada seria o Mosteiro de Odivelas e que a da rainha, sua mulher, seria Santa Clara de Coimbra. D. Dinis fundara Odivelas e regulamentou de forma verdadeiramente exaustiva os modos de vida nesse claustro, quer para a comunidade religiosa das cistercienses, quer, muito particularmente, em tudo o que respeitava à sua capela funerária. Para esta encomendou um túmulo que estava em execução por volta de 1318. Nos seus faciais foram esculpidas cenas da vida religiosa cisterciense, a que se associaram várias narrativas alusivas a momentos da vida do monarca. Sobre o tampo da arca tumular foi lançada uma escultura de vulto do soberano que se pensa ter sido retocada ou alterada ao longo dos séculos. É sabido, todavia, que o túmulo do Rei foi ocupando vários sítios no interior da igreja, acabando, no século XX, na capela absidal, do lado do evangelho da igreja, em que atualmente se acha.

Dos reis anteriores a D. Dinis, infelizmente, nenhum túmulo primitivo chegou aos nossos dias. Os dos reis sepultados em Santa Cruz de Coimbra foram modificados no século XVI, e os dos reis Afonso II e Afonso III, em Alcobaça, como o de D. Sancho II, em Toledo, desapareceram totalmente, restando apenas os ossários que se preservam nas capelas do dito mosteiro cisterciense. Desconhece-se, ainda, o túmulo de D. Afonso IV, desaparecido no terramoto de Lisboa de 1755. O modelo funerário patente no túmulo de D. Dinis, com a figura real coroada e jazente sobre o tampo da arca fúnebre, tem alguma continuidade no do seu neto, em Alcobaça, lavrado em vida deste soberano, assim como o de Inês de Castro, cuja representação escultórica, controlada por D. Pedro I, a exalta e configura na plenitude da majestade régia. O Rei D. Fernando I abandonou o modelo decorativo das arcas funerárias de seu pai e bisavô, mas os seus sucessores, seja a rainha D. Beatriz (falecida em Castela), seja o irmão, D. João I, recuperariam em parte os antigos modos de representação fúnebre, mormente a figuração escultórica de jazentes, coroados e com os demais apetrechos e insígnias de majestade régia, sobre a tampa dos túmulos. Além do mobiliário funerário que nos chega, nas contingências referidas, o que se sabe dos cerimoniais e modos exequiais dos reis da primeira dinastia portuguesa é muito lacunar. As informações dos cronistas são praticamente nenhumas ou, se algumas sobrevivem, de redação tardia, e as iconografias contemporâneas dos monarcas igualmente muito escassas ou inexistentes. O conhecimento histórico, neste campo, é tão frágil que se discute, até, se os reis portugueses medievais eram ou não coroados… As reflexões expostas contextualizam a dificuldade de responder à questão de saber qual seria o modelo ou arquétipo da coroa real de D. Dinis. Como se referiu, as (con)figurações do seu túmulo não permitem que se escolha a coroa de pedra, bastante deteriorada, aliás, da sua estátua jazente que nele se vê, porque deverá corresponder a uma produção tardia. A questão de ficar à arbitrariedade do imaginário ou escultor a escolha do modelo de coroa, que desenhava e esculpia para adornar a imagem do Rei, não nos parece que possa justificar a ausência de um padrão ou modelo efetivo de coroa real portuguesa. Sabe-se que os monarcas tinham, nos seus tesouros, mais do que uma coroa. É o caso de D. Dinis ou da sua mulher. Mas esta informação é documental e não visual. Ela permite reconhecer que havia uma coroa que se transmitia entre as primeiras gerações dos reis portugueses. Naturalmente que é aceitável que ela pudesse ser intervencionada ou enriquecida se necessário. Mas são possibilidades apenas. Como seria a coroa — o arquétipo, se for aceitável a sua existência, claro — de D. Dinis? É possível reconfigurar essa coroa real? Como? Que dimensão teria o seu aro? Como seria? Que materiais eram usados na composição da mesma? Prata dourada? Ouro puro? Que decoração e efeitos de ourivesaria possuiria? Seria uma coroa portuguesa ou ao modo das francesas — atendendo à biografia do onde de Bolonha e Rei D. Afonso III —, ou sicilianas — como a espada agora achada no túmulo do Rei — ou navarras, ou inglesas, ou aragonesas, ou castelhanas ou muçulmanas, dada a história cultural do reino e de alguns modos comportamentais públicos da realeza portuguesa neste campo? Traduziria um fio memorial carolíngio, como parece ter sucedido com o escudo real, ou antes bizantino, numa corte, como a de D. Dinis, em que tal presença não era estranha? Não há certezas nem documentais, nem artísticas, nem arqueológicas que, até ao momento, permitam uma opção isenta de dúvidas.

Neste contexto heurístico e reconhecendo as cautelas que se sublinham, poderá consensualizar-se que alguns dos elementos esculpidos no túmulo de D. Pedro I, fabricado, como se referiu, em vida do Justiceiro, ou seja, cerca de 30 e poucos anos depois da morte de D. Dinis, possam orientar algumas opções. O túmulo de D. Pedro I é muito singular nomeadamente porque oferece uma representação do monarca assaz realista, especialmente ao nível do seu rosto, e porque foi produzido em vida do Rei e por ele seguramente aprovado, ele que decidiu tudo o que o sarcófago de D. Inês deveria representar. A proposta para encontrar uma coroa que integrasse a reconstituição do rosto do monarca foi a de escolher a coroa esculpida na campa funerária de D. Pedro I como arquétipo de referência. A sua reconstituição deriva de um processo tecnológico de modelação e de escultura digital que respeita dados fornecidos pela antropologia forense (caso da dimensão do aro da coroa, adaptado ao crânio do monarca). É possível reproduzir florões e pedúnculos, pérolas e outros elementos decorativos, mas sem que se possa determinar, por exemplo, que pedras preciosas, se o eram, efetivamente se devem considerar: esmeraldas? Rubis? Safiras? Diamantes? Não há respostas definitivas, apenas possibilidades e todas elas extremamente frágeis. Será possível, naturalmente, aperfeiçoar a «escultura digital» proposta, conseguida dentro de contingências que não permitiram, por ora, uma representação ainda mais perfeita.

A intervenção arqueológica no projeto de Conservação e Restauro do Túmulo de D. Dinis

O túmulo de D. Dinis encontra-se atualmente no absidíolo esquerdo da Igreja do Mosteiro de S. Dinis e S. Bernardo de Odivelas, classificado como Monumento Nacional desde 1910. Em 2016, a então Direção Geral do Património Cultural (DGPC) promoveu o registo da situação de referência da arca tumular através de um levantamento ortorretificado e de uma intervenção de limpeza, efetuada por uma equipa de conservação e restauro que permitisse registar as intervenções de que tinha sido objeto, as patologias, e definir quais os tratamentos e metodologias mais adequados para uma intervenção futura. Foi no decurso desta ação que, por colapso das argamassas que uniam uma zona fraturada dos pés da estátua jacente, correspondente a um arrombamento possivelmente dos inícios do século XIX, se tomou a decisão de introduzir uma sonda para observação do interior do túmulo. Registou-se uma acumulação de depósitos variados — cimento, restos de correias, folhagem, restos de reboco e fragmentos de telha —, bem como restos do que pareciam ser os membros inferiores do rei, em desarticulação (figura 1). A entrega do relatório final da intervenção conservativa, que permitira avançar para a elaboração de um projeto, bem como a situação testemunhada de intrusões posteriores ao século XIV, que não dignificavam a tumulação, foram os motores para a elaboração de uma candidatura mais abrangente para valorização do túmulo de D. Dinis, com 16 componentes, das quais destacamos a intervenção na cobertura, na zona da cabeceira e fechamento de juntas, para dirimir as humidades e entradas de água que pudessem comprometer qualquer intervenção futura, o registo ortorretificado das fases da intervenção arqueológica, a pesquisa documental, a conservação e o restauro da pedra, a intervenção arqueológica, a exumação e o estudo bioantropológico, a conservação dos têxteis e o registo fotográfico e videográfico, entre outras. O projeto foi candidatado, no ano de 2017, ao Programa Operacional Regional de Lisboa 2020/2020 e aprovado em 31 de outubro. A abertura do túmulo carecia, ainda, da autorização do Ministro da Cultura, cujo despacho positivo foi emanado em 24 de maio de 2018. Tratando-se de um contexto funerário era ainda necessário submeter um Pedido de Autorização de Trabalhos Arqueológicos (PATA), nos termos do Decreto-Lei n.º 164/2014, de 4 de novembro, bem como integrar na equipa, além do arqueólogo responsável, e de acordo com artigo 11.º, um especialista em antropologia física. A equipa contou, ainda, com especialistas de história e conservação e restauro na área dos têxteis, dos metais e da madeira. A abertura do túmulo aconteceria em 9 de outubro (dia do aniversário do monarca) de 2019.

Além do que fora observado através dos registos captados pela sonda, a informação recolhida das fontes escritas — documentais, crónicas e bibliográficas —, ponto de partida de qualquer intervenção arqueológica, testemunhavam um conjunto de intrusões relevantes para a definição da metodologia de intervenção arqueológica: o túmulo tinha sido deslocado do sítio original cerca de seis vezes — a primeira testemunhada em 1554 —, sofrera severos danos com a queda da abóbada da nave aquando dos terramotos de 1755 e 1758, e passara, ainda, por um arrombamento e por uma abertura, em 1808 e em 1938 respetivamente.

A descrição do descerramento do túmulo, registado em três artigos, configurava uma realidade muito diferente da que viríamos a observar. Verificou-se uma perturbação severa relativamente ao que poderia ter sido o contexto original da deposição, em 1325, e igualmente, no que concerne às descrições de José Crespo (CRESPO, 1942), Ferreira Simas (SIMAS, 1943) e Cordeiro de Sousa (SOUSA, 1966) sobre a abertura da arca tumular, em 1938.

No que respeita ao estado do caixão de madeira — a «madeira do caixão (…) que foi preciso remover com todo o cuidado» (CRESPO, 1942:114) ou «a tampa não apresenta vestígios de ter sido levantada em qualquer época» (SIMAS, 1943:360) —, que se encontrava, assim, in situ, encontrámos tábuas amontoadas e muito fragmentadas; sobre o contexto da deposição e de como o Rei se teria apresentado vestido — «O cadáver de D. Dinis encontrava-se completamente envolvido neste “armorete” ou “examitum”, como que enfardado: as dobras excedentes cobriam-no por cima, enquanto uma fita de seda, com botões de cobre dourado, ou de ouro, pregados de espaço a espaço, atava em sucessivas voltas» ou «Junto ao peito viam-se restos de roupa interior, feita de um estofo de linho e seda, de dois milímetros de espessura, alaranjado e moído pelo tempo» (CRESPO, 1942: 114-117) —, as descrições sugerem que a abertura provocou uma interrupção drástica do estado que vigorava há centenas de anos na arca tumular — um ambiente estável quer no que diz respeito à temperatura e humidade relativas, quer às restrições ao acesso do oxigênio —, uma vez que o que foi observado, em 2019, representava um resquício do que fora testemunhado (ou mesmo efabulado, já que os autores não são coincidentes nas suas observações), em 1938; da mesma forma, também não observámos, sobre o esqueleto, o estado de mumificação, pelo menos parcial e eventualmente natural, a que se referiu Ferreira Simas (SIMAS, 1943:359) — «A barba ruiva e longa (…) estava ligada à pele que se separava um pouco dos maxilares. Na cabeça apareciam tufos de cabelo (…) presos aos ossos pela pele (…).»

Em resumo, diríamos que muitos dos elementos do contexto e do depósito funerário já não se encontravam in situ e muitos tinham mesmo desaparecido, os tecidos apresentavam uma mistura de elementos têxteis de difícil identificação e havia adições, dos inícios do século XX, nomeadamente páginas do Diário de Notícias de 30 junho de 1938.

Esta circunstância levou a que, após a limpeza dos depósitos relacionados com as intrusões modernas, se procedesse à avaliação da consistência e composição de todos os têxteis, e se optasse, em determinada fase da intervenção arqueológica, por uma alteração metodológica de alguma complexidade. Depois de a equipa de arqueologia proceder à identificação de todas as unidades estratigráficas (UE), ao seu registo tridimensional (x, y, z), fotográfico, ortorrectificado, ao preenchimento de fichas técnicas que permitiam a relação das UE, por forma a preservar a maior quantidade de informação possível para contextualização, os têxteis foram manuseados pelas conservadoras e enrolados, do lado esquerdo e direito (em relação ao depósito régio), para se proceder ao registo das unidades que envolviam os restos mortais do monarca. Só depois de concluída esta fase, a equipa de arqueologia procedeu a nova identificação e exumação de depósitos sobre o esqueleto a fim de o libertar. Seguiu-se a recolha dos elementos osteológicos, da responsabilidade dos antropólogos da UC, em parceria com os arqueólogos e conservadores, tendo em conta que o esqueleto apresentava material têxtil e outros depósitos associados.

Os tecidos foram seguidamente desenrolados a fim de se prosseguir com a limpeza de depósitos para definição, registo exaustivo e desenho da espada in situ. Note-se que a espada, antes da exumação do esqueleto, estava sob o ilíaco direito do monarca, pelo que seria impossível removê-la sem afetar a conexão do esqueleto. Também esta fase, e atendendo ao estado de conservação da espada, especialmente na zona da bainha, exigiu um trabalho de prévio de preparação, por parte das técnicas de conservação, por forma a garantir a manutenção da sua integridade. Foi executada, então, uma operação de pré-consolidação por etapas: iniciou-se pela ponta do cinto, que se encontrava mais frágil; depois, soltaram-se os têxteis sobre a bainha em madeira e, ao mesmo tempo, procedeu-se à sua consolidação e revestimento através do facing de papel japonês e gaze.

Por fim, chamaria a atenção para o facto de algumas destas opções de intervenção sobre o depósito funerário, nomeadamente sobre a possibilidade de levantamento das evidências arqueológicas em bloco dos têxteis — manto, túnica e almofadas — e da tábua de fundo do caixão em madeira, foram extremamente delicadas e complexas, não sendo isentas de riscos. Só a intervenção dos técnicos das várias áreas, em concertação, pode garantir a integridade, segurança e sucesso da operação.

A reconstrução antropológica facial

A oportunidade de estudar antropologicamente o esqueleto do Rei D. Dinis era única e tinha de ser bem aproveitada. O rigor científico de cada passo da operação era obrigatório, de forma a maximizar a informação recolhida. A análise antropológica aconteceu no âmbito dum processo interdisciplinar de grande envergadura. Importa, pois, frisar que não se abriu propositadamente o túmulo para estudar o esqueleto. Além disso, é igualmente relevante relembrar que o túmulo já tinha sido aberto noutras ocasiões, sendo uma das consequências principais a desarticulação dos ossos dos pés e das pernas, abaixo dos joelhos.

Envolvendo a intervenção de várias especialidades interdependentes deu-lhe um desafio acrescido, já que a necessária cumplicidade demorou a concretizar-se, mormente por causa da pandemia que limitou muito o contacto entre os vários peritos que não se conheciam antes. Outro obstáculo de peso foi o das autorizações, que chegaram por várias fases e em vários tempos. Uma vez contornadas as dificuldades, a equipa de antropologia pôde efetuar a sua análise. No total, a equipa inclui seis antropólogos, todos da UC, dois especialistas em medicina dentária e dois peritos da área da imagiologia.

Além da parceria com o Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses IP., designadamente com os Serviços de Química e Toxicologia e Biologia e Genética Forenses, com o Laboratório de Aqueociências do Património Cultural IP., e com a Clínica Affidea, recorreu-se a várias prestações de serviço. O objetivo primordial foi recorrer aos melhores especialistas mundiais, designadamente, a University John Mores Liverpool, Face Lab; a University of Pensilvania, EUA; a University of Waikato, Nova Zelândia; a University of Leicester, Reino Unido; o Australian Center for Ancient DNA, University of Adelaide, Australia; e o Max Planck Institute, Leipzig, Germany.

A intervenção antropológica pode ser dividida em 11 etapas, que a seguir se especificam. As grandes questões que nortearam as análises e que estiverem sempre subjacentes foram, desde logo, saber se se era mesmo o Rei, o que se poderia confirmar sobre ele e a sua vida, e o que se poderia saber de inédito com base na leitura dos seus ossos. Como este artigo está essencialmente focado na obtenção da imagem do Rei, todas as outras análises são apenas referidas dum modo breve.

Os 11 passos da análise antropológica do monarca foram os seguintes:

1) Datação por radiocarbono, 14C. Esta datação poderia, desde logo, excluir a hipótese de ser o Rei. Como os resultados obtidos eram consistentes com os séculos XIII-XIV, prosseguiu-se para as outras etapas;

2) Exumação do esqueleto, passo a passo. A exumação seguiu os princípios da arqueotanatologia, ou seja, cada peça óssea foi exumada individualmente e a sua posição cuidadosamente registada. Este processo é de extrema importância para memória futura e para a interpretação do que aconteceu ao túmulo no passado. O trabalho de exumação foi coordenado com os restantes elementos da equipa, nomeadamente com a arqueologia e com a equipa de restauro;

3) Análise antropológica no Mosteiro de Odivelas. Uma vez inventariado todo o esqueleto, o mesmo foi objeto de uma minuciosa análise antropológica. De destacar o excelente estado de preservação do esqueleto, com a recuperação da grande maioria dos ossos, todos completos e preservados, o que é uma enorme mais-valia para o estudo antropológico. O perfil biológico, ou seja, os dados mais genéricos que caracterizam um indivíduo, foram obtidos com segurança. Trata-se da estimativa de quatro parâmetros, nomeadamente, sexo biológico, idade, afinidades populacionais e estatura. Note-se que qualquer um destes parâmetros poderia, só por si, levar a uma exclusão da identidade do Rei. Veja-se o exemplo, se o esqueleto fosse feminino, obviamente não seria o de D. Dinis.

Não há dúvida de que os ossos guardam episódios da vida que, devidamente decifrados, se tornam fontes documentais insubstituíveis. A análise métrica e morfológica do esqueleto, a interpretação de vários indicadores ósseos sobre a idade à morte; a análise métrica e não métrica dos ossos da bacia e dos ossos longos; a morfologia facial e, finalmente, a dimensão dos principais ossos longos, mostraram, duma forma inequívoca, que o esqueleto pertenceu a um homem, com mais de 60 anos na altura da morte, com uma afinidade populacional europeia e uma estatura em redor de 165 cm. O Rei teria uma compleição robusta, inclusive craniana.

No que concerne às patologias que podem ser diagnosticadas com base nos ossos, deve destacar-se a osteoartrose vertebral moderada, patologia degenerativa articular ao nível das vértebras, algo que é de esperar numa pessoa com a sua idade, e os nódulos de Schmorl (hérnias) nalguns corpos vertebrais;

4. TAC ao crânio e fémur. A tomografia axial computorizada do crânio e do fémur foram realizadas num hospital privado de Lisboa. Pretendia-se, sobretudo, aceder ao crânio numa perspetiva holística. Refira-se que as imagens da TAC estão agora a ser processadas por IA;

5. Análise dentária. Esta análise foi da responsabilidade de Isabel Poiares Baptista, da UC. O Rei, inesperadamente, preservava todos os dentes e tinha apenas uma cárie, além de duas outras em fase inicial. O desgaste dos dentes anteriores, nomeadamente, na superfície palatina (virada para o interior da boca), levanta a hipótese de tal desgaste poder ter uma etiologia diferente de comportamentos mastigatórios. O monarca padecia, também, de alguma doença periodontal;

6) Análise da dieta: tártaro; análise química dos ossos. Para conhecer mais sobre a dieta do monarca, além da análise dentária, efetuou-se um estudo exaustivo do tártaro e uma análise química dos ossos, designadamente uma análise de isótopos e de oligoelementos. Entre outros resultados, foram detetadas várias bactérias orais em relação com a doença periodontal;

7. Análise toxicológica. As análises toxicológicas dos restos vestigiais de cabelo, encontrados in situ, e da única unha foram efetuados no SQTF do INMLCF.IP., tendo-se revelado negativas para o chumbo, arsénio e mercúrio;

8. TAC da coluna. Numa fase mais avançada do estudo, depois de obtida permissão para estudar o esqueleto pós-craniano, a análise imagiológica exaustiva da coluna foi efetuada na Clínica Affidea, sob a responsabilidade do Dr. Carlos Prates. Entre outros, obteve-se uma excelente reconstrução 3D da coluna;

9. Análise genética. Na análise genética, optou-se por uma abordagem pouco invasiva. Ou seja, a opção não foi obter ADN a qualquer custo. Recorde-se que um dos objetivos deste tipo de intervenções antropológicas é dignificar os remanescentes ósseos humanos, pelo a recolha de amostras foi muito conservadora. Além disso, o esqueleto do Rei foi exumado praticamente completo e, posteriormente, higienizado. Os fragmentos ósseos e a raiz dentária selecionados para análise genética foram analisados em três laboratórios distintos, tendo sido o INMLCF.IP., designadamente o SBGF, que conseguiu os melhores resultados. As análises continuam em curso. Não obstante, do que até agora se apurou, destacamos os dados com relevância para o presente artigo, ou seja, para a reconstrução facial. Assim, apurou-se que a origem biogeográfica do Rei era europeia, que os olhos eram claros, de tom azul, que a tanto a pele como o cabelo tinham uma tonalidade clara;

10. Reconstrução facial. A reconstrução facial foi efetuada no Face Lab da University John Moores, Liverpool. Para que tal fosse possível, a equipa de antropologia efetuou uma análise morfométrica e procedeu digitalização 3D por scanner do esqueleto craniano, ou seja, do crânio propriamente dito e da mandíbula. Essa digitalização foi a grande base da reconstrução do rosto do monarca que teve ainda em conta os dados fornecidos pelos marcadores genéticos dos cromossomas autossómicos atrás referidos, i.e., as tonalidades da pele e do cabelo e a cor dos olhos. O excelente estado de preservação do crânio, onde até os ossos nasais estavam bem preservados foi crucial para a obtenção de um resultado fidedigno. A forma do crânio, a altura do rosto, a proeminência do nariz, o queixo algo recuado, a inclinação da testa, as maçãs do rosto, a robustez do occipital, tudo isso é absolutamente credível, baseado em observações diretas nos ossos. Já sobre a cor do cabelo, não temos tanta segurança. Se é verdade que foram recuperados alguns cabelos in situ, mormente na parte posterior do crânio, a sua cor arruivada poderá ter-se ficado a dever à decomposição do cabelo. Como a cor do cabelo pode sofrer alteração durante a decomposição, não podemos afirmar que o cabelo seria efetivamente ruivo como dizem as fontes documentais. Recorde-se que a genética conseguiu a tonalidade, mas não propriamente a cor. As pouquíssimas esculturas atribuídas ao Rei, designadamente a do seu túmulo, indicavam um cabelo encaracolado, barba e bigode. Ou seja, estes três dados não foram efetivamente determinados cientificamente. Também a espessura dos tecidos moles não será 100% fidedigna, já que a mesma depende não só do sexo e da idade (o que conhecemos), mas também do índice de massa corporal, que se desconhece.

A importância de uma reconstituição facial para o avanço do conhecimento sobre determinada figura histórica é diminuta, porém relevante do ponto de vista da divulgação, O certo é que se conseguiu o primeiro retrato cientificamente comprovado de um rei português. Esta é a cara que a ciência deu a D. Dinis.

Esta face tem sustentação científica. Não foi um artista que imaginou como seria D. Dinis. Foram os seus remanescentes, nomeadamente o seu crânio e o seu património genético que disseram como ele era de facto. Foi através da ciência que se recuperou toda esta informação, foi a ciência que a traduziu, e interpretou de forma a se obter o rosto do Rei;

11. Integração de todos os resultados. A fase final da investigação antropológica é a do cruzamento e integração de todos os dados obtidos, ainda em curso, e que será anunciada quer através de artigos científicos internacionais, quer na produção de uma monografia final.

Bibliografia:

CRESPO, José (1942) — Santa Isabel na doença e na morte, Revista Instituto, n.º 8, Coimbra

SOUSA, JOSÉ MARIA CORDEIRO DE (1960) — As inscrições lapidares do Mosteiro de Odivelas, Separata dos Anais, II série, volume 10, Lisboa.

SIMAS (1943), Elementos para a biografia do rei Lavrador, Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, n.º 5 a 8, p. 357-361.