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Anseio de Plenitude e Horizonte de Paz Universal em Luís de Camões

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JP

José Carlos Seabra Pereira

Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos

Toda a obra épica e lírica de Camões se constrói em função de horizontes de plenitude que valem e actuam como causa final das energias poéticas — humanistas, amorosas, cognitivas, artísticas, patrióticas, religiosas.

Embora todos esses horizontes e todas essas energias se intermotivem, não se tem atentado numa das correlações improváveis ou ínvias — a da energia patriótica na Expansão imperial, ascensional em fortitudo et sapientia (e sua prática pluridimensional do ideal de excelência por Armas e Letras), com o horizonte de plenitude na Paz universal, pela globalização da cristandade.

1. Soldado e Poeta entre cavaleiros-escritores da estirpe de Duarte Pacheco Pereira e António Galvão, Luís de Camões inscreve a sua figura de excelência pelas Armas e Letras num desejo de espírito humanista para a Expansão e o Império. N’Os Lusíadas, Camões não abdica da presença elegíaca e da consciência crítica do eu, nem do jogo dialógico dos seus Autos e da estética do desafogo das suas Rimas; mas, sempre «desvarios em versos concertando», inscreve pela «pena» o sentido de vida e obra num «canto» estruturado sob a égide do «sentido de comunidade» e de «um humanismo cívico de cunho nacional» (Luís de Sousa Rebelo).

Eis aí um programa discursivo que — em regime tão histórico quanto profético e, por isso, proposto a uma interpretação também ela figural (na acepção da exegese bíblica e da hermenêutica auerbachiana) — corresponde a um projecto lusíada de destino humano com horizonte de plenitude universal.

Programa poético e projecto geo-estratégico implicam o reconhecimento do poderio imperial português e dos meios valiosos e eficientes com que ele fora conquistado — pela clarividência estratégica em espaço de soberanias pulverizadas e de forças fragmentadas, pelas chefias experimentadas e valorosas agindo com «soldados a tudo obedientes» (X, 46) no pressuposto da «lealdade de ânimo e nobreza» (V, 90) ao «regimento, em tudo obedecido, / De seu Rei» (II, 83), pela força anímica e moral, pela clara definição dos inimigos principais («mouros» e venezianos, turcos e mamelucos do Egipto) e pelo princípio de renúncia à violência entre compatriotas, pela rede de fortalezas costeiras, pela superioridade dos velozes navios e da poderosa artilharia, pela agressividade da táctica e dos combatentes,

Mas, porventura não menos importantes, são também cantados outros instrumentos políticos e económicos da grei lusíada e do seu monarca, «Senhor da conquista, da navegação e do comércio»: a teia diplomática de «pactos e lianças» — «De paz e de amizade, sacra e nua» para «Comércio consentir das abondanças /...» (VII, 62).

Desde a Dedicatória d’Os Lusíadas, anomalamente extensa e argumentativa, D. Sebastião recebe do vate, para a «Polícia portuguesa na paz e na milícia» (I, 72), o exemplo conjugado das almas de eleição («cá famosas») dos dois avós, D.João III e Carlos V, cuja memória de «obras valerosas» — «~Ua na paz angélica dourada, / Outra polas batalhas sanguinosas» — «Em vós esperam ver-se renovada», como penhor seguro de que se lhes juntará «No templo da suprema eternidade» (I, 17).

Depois, serão recorrentes a disforia dos lances em que «em figura de paz lhe manda guerra» (I, 94), ou em que urge pôr freio «à desordem do vulgo temerária na santa paz» (Oitavas II, «Como nos vossos ombros tão constantes»), e a euforia dos tempos em que, «Alcançada já a paz áurea divina», «o Reino próspero florece /… / Em constituições, leis e costumes» (III, 96).

Porém, mesmo quando na Cidade dos homens, sobrepujando o desconcerto e o desvario, temporariamente prevalecem a ordem e o sentido dos cavaleiros e dos vates, dos heróis e dos artistas, dos sábios e dos justos, a todo o momento podem ressaltar o «Caso duvidoso» e as «sem-razões»; e mesmo para lá da contingência e fungibilidade dos momentos terrenos em que o sujeito poético se sente «em paz com minha guerra» (canção IV) e dos períodos de alcançada paz comunitária, é preciso que surja e resplandeça, como prémio redentivo e estímulo de causa final, a antevisão da paz na eternidade celeste, a Paz da reintegração ontológica em Deus, ao cabo do trajecto ascético, penitencial e salvífico, das redondilhas «Sôbolos rios que vão»: «cale-se esta confusão, cante-se a visão da paz.»

2. Porventura, seremos mais sensíveis a esses vectores do discurso poético de Camões se tivermos presente a coerência orgânica com que na estrutura figurativa da obra camoniana — como suma criação de arte poética que traz ao mundo novos e subidos contributos para os campos de bens simbólicos da cultura humana —, dois elementos do seu imaginário e dos seus tropos se revelam de grande efeito na expressão de uma hierarquia dos valores e na correlata paideia axiológica (apoiada na exemplaridade desses macrossignos centrais que são as personagens e as situações da narração).

Refiro-me, compreensivelmente, a «louro(s)» e «palma(s) — que podem comparecer juntos, mas cujo alcance significativo não é coextensivo. De facto, a(s) palma(s) pode(m) por vezes reforçar o sentido do(s) louro(s) na celebração da glória terrena justamente atribuída a heróis das virtudes cívicas, políticas e militares, e das qualidades culturais (de pensamento, saber e criatividade artística). Todavia, o(s) louro(s) não participa(m) da dimensão transcendente e soteriológica que a(s) palma(s) consagra(m) no santo e no mártir e que, nos versos do rapsodo e vate da condição lusíada por antonomásia, glorificam o miles gloriosus português que vive e morre como miles Christi.

Uma e outra vez, a retórica dos dons de beleza, de valor e de atracção se compraz nos versos de Camões em simbolizar a primazia com a palma, a exemplo do magoado canto amoroso do «pastor queixoso» que protagoniza a Écloga V («A quem darei queixumes namorados», que Camões dedica a D. António de Noronha): «Se da alma e do corpo tens a palma, / ...».

São patentes as faculdades, vontades e realizações, pelas quais o Poeta, com seus heróis, leva a palma, isto é, supera(-se) e alcança a palma da vitória nas adversidades e nas pugnas de toda a ordem. Então, vinga o sentido de «levar a palma» como prova e ufania de vitória, nas Armas e nas Letras, na Navegação e na Conquista (por isso reverberando na abertura do Canto VII: «Ora sus, gente forte, que na guerra / Quereis levar a palma vencedora: / Já sois chegados, já tendes diante / A terra de riquezas abundantes!»), ou noutras prestações físicas e anímicas, como figurado na lírica pela projecção bucólica da Écloga II («Ao longo do sereno») com o pastor Almeno («nenhum pastor cantando me vencia. /… / na luta, no correr e em qualquer manha, / sempre a palma antre todos alcançava.») ou nos lances e transes amorosos, como figurado na dramaturgia pela projecção dialógica do Auto de Filodemo («...se Amor pôde vencer, / De mim levando esta palma, / Eu não lho pude tolher, /...»).

Quando essa valência comparece noutros estratos da sintagmática e da semântica épicas, líricas e dramáticas da poesia de Camões, indicia já outra linha de fuga na axiologia e na paideia da composição. Assim acontece n’Os Lusíadas no episódio cavaleiresco dos Doze de Inglaterra — «Basta por fim do caso que entendemos / Que com finezas altas a afamadas / Cos nossos fica a palma da vitória, / E as damas vencedoras e com glória.» (VI, 66) -, ou no louvor de Duarte Pacheco Pereira como «Aquiles lusitano» - «Nenhum claro barão no Márcio jogo / Que nas asas da fama se sustenha / Chega a este, que a palma a todos toma» (X, 19).

Nessa progressão, avançamos para o plano em que o(s) louro(s) ganha(m) relevo qualificativo na retórica do enaltecimento e do panegírico, como emblema da glória terrena, merecida pelas Armas e Letras, e da fama que a difunde. Aliás, nesse sentido o tópico imagístico é convocado em causa própria pelo Poeta, sobretudo quando n’Os Lusíadas protesta que não lhe concedem as «capelas de louro que [o] honrassem» (VII, 81).

Mas paralelamente, ou por afluências como a do arrevesado soneto especulativo «A Morte, que da vida o nó desata» — «porque assi leve triunfante a palma» —, avançamos também para o plano daquela retórica camoniana em que a(s) palma(s) se destaca(m) como emblema da glória celeste e como figura cara à sua difusão hagiográfica, recorrente no cerne ideológico do projecto lusíada e da mundividência religiosa (escatológica e soteriológica) que subtende a estruturação da narrativa integrista d’Os Lusíadas e de alguns poemas correlatos das Rimas.

Compreende-se, pois, que os louros e as palmas surjam juntos, na emblemática axial do «canto» heróico e missional de Camões: no reinado de D. Sancho I, na vitória contra o renegado Pedro Fernandes de Castro «Martim Lopes se chama o cavaleiro, /Que destes levar pode a palma e o louro» (VIII, 22-23); enquanto «invicto cavaleiro» (IV, 54) só nas terras de missão em Marrocos, e não pela ambiciosa incursão bélica por terras cristãs de Castela, é que o rei D. Afonso V «Na fronte a palma leva e o verde louro» (IV,55); se as ninfas da Ilha do Amor, tão «namorada» quanto «angélica», ornam os seus amados navegantes «De louro e de ouro e flores abundantes» (IX, 84), na chave da alegorese Camões estatui que «Os triunfos, a fronte coroada / De palma e louro, a glória e maravilha: /Estes são os deleites desta Ilha.» (IX, 89).

Na Elegia VII («Despois que Magalhães teve tecida»), a glorificação de D. Leonis Pereira entre os que se inscrevem na galeria dos grandes «N~ua mão livros, noutra ferro e aço», justifica-se pelo «saber e esforço no sereno peito», mas sobretudo na medida em que «artes e ciência lhe ensinaram, / inclinação divina lhe influíram, / as virtudes morais, que logo ornaram»: merece «palma e glória», porque «tais provas fez de cavaleiro, / que de cristão magnânimo e seguro, / a si mesmo venceu por derradeiro.»

Na Ode VII («A quem darão de Pindo as moradoras»), Camões ergue o clamor para atribuir «florescentes capelas / do triunfante louro ou mirto verde, / da gloriosa palma, que não perde / a presunção sublime» a D. Manuel de Portugal — alto fidalgo nas «Armas» sociais e políticas, mas mais alto espírito nas «Letras» como poeta que passa do meritório canto profano para o superior «canto ao divino».

Mas mesmo noutro quadrante de visão escatológica e soteriológica, a extraordinária Elegia V («Se quando contemplamos as secretas») dá dimensão metafísica à mesma simbologia: «Padres são que estão no Limbo escuro, / que já de louro e palma vos coroam.»

Mas, tal como havia muito constava da iconografia, do cântico litúrgico e da homilética católica — e assim era do fervoroso conhecimento de Camões —, a(s) palma(s) era(m) apanágio peculiar da consagração apologética do heroísmo espiritual dos mártires e dos mortos em combate de milícia cristã.

O Canto VIII d’Os Lusíadas concentra esse emblema em sucessivas evocações de heróis da fundação e consolidação do Reino de Portugal e da sua identidade cristã, numa legitimação de «guerra justa» (em Reconquista) e sua promoção como «guerra santa» em que o próprio braço de Deus intervém: «É dom Fuas Roupinho, que na terra / E no mar resplandece justamente / Co fogo que acendeu junto da serra / De Ábila, nas galés da Maura gente. / Olha como em tão justa e santa guerra / De acabar pelejando está contente; / Das mãos dos Mouros entra a felice alma / Triunfando nos céus com justa Palma.» (VIII, 17); «Não vês um ajuntamento de estrangeiro / Trajo sair da grande armada nova, / Que ajuda a combater o Rei primeiro / Lisboa, de si dando santa prova? / Olha Henrique, famosos cavaleiros, / A Palma que lhe nasce junto à cova; / Por eles mostra Deus milagre visto, / Germanos são os Mártires de Cristo.» (VIII, 18); «Vês, vão os reis de Córdova e Sevilha / Rotos cos outros dous, e não de espaço; / Rotos? Mas antes mortos, maravilha / Feita de Deus, que não de humano braço. / Vês já a vila de Alcáçare se humilha, / Sem lhe valer defesa ou muro de aço, / A dom Mateus, o Bispo de Lisboa, / Que a coroa de palma ali coroa.»

Mais tarde, de pia beleza se reveste a consagração de D. Lourenço de Almeida como exemplo de mortificado miles Christi: «Vai-te, alma, em paz da guerra turbulenta / Na qual tu mereceste paz serena» (X, 32). A Elegia VI («Que novas tristes são, que novo dano»), que Camões dedica à morte de D. Miguel de Meneses e, entre seus heróicos ascendentes, à memória do bisavô D. Duarte de Meneses, grava uma variação desse motivo: «Vai-te, alma, em paz à glória sempiterna! / … / E lá nos aposentos soberanos / o recebem da palma coroado, /...».

3. O canto camoniano do projecto lusíada, entendido como sonho e obra de dilatação da Fé e do Império, subsume-se na dupla convicção de que a grei portuguesa havia aberto o caminho para o primeiro tempo de globalização e de que, nesse momento de Expansão do seu Estado nacional — gesta tão inconclusa quanto aberta fica a epopeia camoniana de anúncio e expectativa (X, 155-156) —, conduzia a Humanidade para novo e superior estádio.

O profetismo poético de Camões deixava, porém, sob caução a primazia em subsequente estádios teleologicamente regidos pela aspiração ao reino universal das «leis melhores» (II, 46), consoante a grei lusíada ainda soubesse ou não assumir-se, contra «o mundo vil, malino», como a nova «progénie forte e bela» (IX, 42) simbolicamente desejada pelo Amor divino (Vénus, por transferência mitográfica) no limiar da alegorese neo-platónica e gnóstica da Ilha — «imaginada» e «pintada» como «namorada» e «angélica».

Em todo o caso, o visionarismo desse horizonte de plenitude para a grande comunidade humana de dimensão planetária implicava a utopia inspiradora e promotora da Paz universal — que valorizava a Expansão portuguesa e, em simultâneo, questionava a gesta imperial nos seus fins e meios conjunturais.

Sem dúvida, a axiologia de matriz cristã, com que Camões impregna o seu canto da excelência humanista, e a paideia numa filosofia da História de matriz augustiniana atribuem valor supremo à coincidência cavaleiresca das virtudes de heroísmo cívico e espiritual no miles gloriosus que é também miles Christi. E, em certos contextos do destino lusíada, desde a gesta da fundação da Nacionalidade e de consolidação da identidade comunitária até à mais larga e aventurosa afirmação do seu papel ascensional no devir da Humanidade, a narrativa enaltecedora da gesta lusíada não só indissocia o «serviço» à Fé e ao Império, como parece reconduzir o ethos da Expansão ao espírito da Cruzada. Acontece, porém, que não fora unívoco o sentido de Cruzada no período mediévico da Europa cristã, nem o era nos tempos existenciais de Camões e nas conjunturas que a sua obra poética recria.

Os povos cristãos do Norte e do Centro da Europa não tinham, na Idade Média, perante o Islão, muitas vezes sujeito a imagens distorcidas, a mesma experiência histórica que os cristãos ibéricos. Estes haviam atravessado diferentes relacionamentos, alternantes ou concomitantes, com os mouros — em tempos e territórios de hegemonia cristã ou de hegemonia moura. Por consequência, quando radicalizada e teorizada, a ideologia de Cruzada própria de povos transpirenaicos difere da tradição ibérica de relacionação com o Islão, regida por princípios genéricos de direito natural

Sem embargo de tal tradição, a Expansão quinhentista manteve sempre, embora com graus diferentes de intensidade ou de subalternização, o ardor do espírito cruzadístico ou a invocação coonestadora da linguagem cruzadística. No caso de Portugal e, em particular, do seu maior cantor épico, o discurso da narrativa de Expansão nem sempre se desprendeu de um «imperialismo da graça» com tardios laivos de augustinismo político, sobrepostos à tradição escolástica de jusnaturalismo aristotélico e ao pragmatismo de situação.

No entanto, sob essa ideologia oficial, a governação e os poderes portugueses não deixavam de adoptar o sistema dominial das páreas e até a organização de sociedades pluralistas, inspiradas no modelo medieval das comunas mouriscas e judaicas, nos empórios comerciais de Goa e Malaca, no âmbito de uma mais lata adaptação no Estado da Índia de instituições nativas, do sistema tributário e até da idealização civilizacional, patente em Barros, em Mendes Pinto e em Camões.

Mas, como o Índico em que os portugueses vão conquistar poder político e proveito mercantil (sobretudo no trato das especiarias) era, há dezenas de anos, um mar de hegemonia muçulmana, a implantação lusíada enfrenta, então, adversários que são vistos como os mesmos inimigos ancestrais na Europa meridional e na África do Norte. Por conseguinte, esse confronto e a inerente acção militar ganham foros de cruzada — e encontram precisamente em Camões, e na plasticidade da sua obra poética, a grande consagração literária dessa ideologia (em breve satirizada por Fernão Mendes Pinto e ironizada por Cervantes).

Na primeira metade do século XVI, acentua-se — até ao pendor mitificante, sobretudo em torno de Afonso de Albuquerque e dos «cavaleiros» heróicos, sustentáculos da força anímica e moral que, quer se queira quer não, parece ter sido o maior penhor dos sucessos lusíadas e que Camões não evidencia menos do que a supremacia de manobra naval e de armamento — a consciencialização da novidade e da dimensão extraordinárias dos mundos descobertos. Esse exaltante reconhecimento patenteia-se na Ásia, de João de Barros, e noutros cronistas; no Tratado dos Descobrimentos, de António Galvão, e na vasta literatura de viagens; em Pedro Nunes, Fernão de Oliveira, Garcia de Orta e demais literatura científica — e em Camões, com subido conhecimento poético! Ao mesmo tempo, todavia, e sem embargo do predomínio do comércio marítimo sobre a conquista territorial, «a ideia de guerra santa permanece viva, sem dúvida porque, contornada a África, os portugueses se voltam a encontrar com os inimigos de antanho, os Muçulmanos, agora seus rivais mercantis na Índia»; e esse confronto ganha foros de serviço de Portugal à Cristandade, mas agora como projecto de império nacional, com os seus específicos parâmetros geopolíticos.

Nesse quadro, os objectivos sociais e económicos não são descurados, nem omitidos pelos documentos oficiais, pelas directivas superiores e pelos cronistas da Expansão e do Império. O mesmo se diga quanto aos erros e crimes, prepotências e arbitrariedades, desmandos de ambição e cupidez, nepotismos e corrupções, violências e atrocidades ocasionais ou frequentes, de indivíduos ou de facções (lembre-se Fernão Lopes de Castanheda e Diogo do Couto, Gaspar Correia e Mendes Pinto, etc.). Isso mesmo encontramos reiterada e desassombradamente em Camões sob a forma de protesto queixoso e de exercício crítico do seu Humanismo cívico.

Só que, tal como de novo em Camões, procura-se salvaguardar a hierarquia de valores, a conformidade da linha de actuação global com a moral e o direito, enfim a hierarquia dos «quatro fins da vida» — serviço de Deus (e consequente salvação da alma), honra, proveito, prazer — porque já se regiam em doutrina e compromisso os altos Infantes da «ínclita geração» (mesmo o Infante D. João apologista do «siso» estatal enquanto moderação pragmática da «cavalaria», sobretudo no seu parecer de 1432).

Esta hierarquia axiológica, com primado do serviço soteriológico de Deus (entendido de modo diverso, desde o exemplo do Poverello, pelos franciscanos), explica que, mesmo quando se autonomiza da Cruzada, mas com meios tão limitados e tão dilatados empreendimentos, a experiência expansionista ganhe tons de milagre resultante de especial protecção divina, convoque premonições misteriosas e anúncios proféticos, admita fenómenos de maravilhoso no decurso de batalhas e nos transes aflitivos de viagens e naufrágios. Mais uma vez, tudo isso comparece e se enaltece no «pena» e no «canto» de Camões — sendo, porém, de sublinhar (com Luís Filipe Thomaz) que n’Os Lusíadas tal não resulta de uma predestinação arbitrária, mas antes de «uma disponibilidade voluntária do querer humano para colaborar com o divino», de modo que a história de Portugal apareça «como uma espécie de contrato, a todo o momento renovado, entre Deus e os Portugueses».

Na obra poética de Camões, e em particular na narrativa épica, ressalta a tomada de consciência de que só uma pequena parte do mundo seguia ou sequer conhecia o Cristianismo, a par da convicção de existência de comunidades cristianizadas na Etiópia e na Índia sem obediência institucional a Roma. Por outro lado, n’Os Lusíadas avulta o empenhamento, desde o ritual introdutório de Proposição e Dedicatória, na mundialização do Catolicismo em confronto com o expansionismo turco ou «mouro» (estancado in extremis com a vitória de Lepanto, 1571, em vésperas da 1.ª edição d’Os Lusíadas) e em contracorrente às cisões protestantes e às guerras intestinas entre Príncipes cristãos — dando lugar à actuação político-militar que gerou o «Estado Português da Índia» e à concomitante acção missionária e diplomática que conduziu à instituição do régio Padroado do Oriente em 1514.

Na última fase da vida de Camões, a inerente orientação doutrinária resplandecia no regimento do Conselho de Estado e nos apontamentos da Mesa da Consciência (que privilegiavam «a obra de conversão») para o vice-reinado de D. Luís de Ataíde, tal como nas recomendações que este recebe do rei D. Sebastião. É nessa perspectiva que Camões vivera no Oriente e escrevera sobre o Estado Português da Índia «por onde a Lei divina se acrescente» (VII, 25), mas naquele espírito compreensivo sugerido pela história de Saramá Perimal, que se converteu ao Islamismo e «pressupôs de [nessa Lei religiosa] morrer santo» (VII, 33), sem que o Gama ou o narrador/autor textual denunciem ou hostilizem tal memória grata.

De resto, n’Os Lusíadas e nas Rimas, Camões venera «a Lei de cima» do «Deus omnipotente» (VIII, 99), reconhece que «a fraca força humana» dependente da ajuda da «Guarda Soberana» ou «Guarda divina» (II, 30, 31) e coloca sob o signo de «a divina fé que tudo excede» (VIII, 47) quer a narrativa da Fundação de Portugal («Aos infiéis, Senhor, aos infiéis, / E não a mim que creio o que podeis.», III, 45), quer a narrativa da Expansão imperial («Onde vem semear de Cristo a lei», VII, 15, «Vimos buscar do Indo a grão corrente, / Por onde a Lei divina se carente.» VII, 25, «Estendem não somente a Lei de cima, / Mas inda vosso Império preminente», X, 151).

Na sua coerência orgânica, sob a dominante estrutural do seu argumento, o canto épico de Camões surgia sintonizado com os sinais ideológico-políticos que nos anos 70 vinham confortar a ideia de que o pronunciamento do Velho do Restelo não era antitético do novo investimento imperial no Oriente e no Brasil — e que ambos se deveriam cumprir pela integração superadora na peculiar missão lusíada de luta pela unidade moral do mundo, até ao domínio universal das «leis melhores» (II, 46) que a Providência divina, em seu mitográfico transfert para a voz de Júpiter, anuncia e garante.

Nem o reconhecimento generalizado do desajuste entre a amplitude e a lonjura transcontinentais da expansão imperial e as limitações demográficas do Reino europeu podia arrastar Camões e os seus heróis, ou D. Sebastião, para a denegação do projecto lusíada. Este não se regia pelo regime do senso comum e do pragmatismo imediatista — suspeito de esconder, por detrás do ideal clássico de aurea mediocritas, a acomodação do homem mediano à existência trivial. O projecto lusíada enfrentava as iminências de crise com a ética da superação. Cumpria-se no risco e na abnegação de quem pensava a equação entre Império e meios (humanos e materiais) com espírito visionário e cavaleiresco, situando o destino de Portugal em horizonte de valor universal e intemporal e de inscrição da História humana no horizonte de Eternidade.

4. A exemplaridade de Camões afirma-se, também, quanto ao predomínio quinhentista, na gesta imperial e nos confrontos político-militares, do equilíbrio de doutrina e acção num concertado desígnio de íntimo agone christiano e de acção comunitária — a de Povo organizado em Estado nacional — para a pacificação cristã do mundo.

Em incessante actualização do legado de Cavalaria espiritual, o vate lusíada não é um apologeta do irenismo fabro-erasmiano, nem um belicista incondicional. No âmbito da sociedade internacional constituída na Europa e no Mediterrâneo, sobretudo nas relações entre Estados cristãos, mas não só, Camões defende a paz e o respeito pelas soberanias nacionais, apenas admitindo a legitimidade da «guerra defensiva». No âmbito do confronto com o expansionismo islâmico (turco, árabe, mameluco, etc.), defende a «guerra justa» que se estende do alcance daquela guerra defensiva ao direito de reconquista (nomeadamente no confronto ibérico com os mouros no Norte de África) e que se expande a outros teatros de afirmação imperial — processo histórico em que cada vez menos se invoca a missão de «guerra santa» e cada vez mais sustenta a pugna conforme ao direito pela defesa jusnaturalista do direito e das condições de «comércio e comutação, que é o meio por que se concilia e trata a paz e amor entre todolos homens» (assim dizia João de Barros na Ásia) e do direito de pregação da Fé, firmado pelo magistério de Francisco de Vitória.

Como lembra António de Vasconcelos Saldanha, no Conselho Régio de 1542 em Almeirim, prevalece o parecer de que «o descobrimento da Índia se fez para termos o comércio, o qual, porque se nos impediu contra o Direito Natural e das Gentes, foi necessário usarem as armadas em nossa defensão»; em célebre consulta do Tribunal da Mesa da Consciência, em 1569, corrobora-se a mesma doutrina, tal como no parecer pragmático de Jorge da Silva, em 1573, a pedido de D. Sebastião.

A acção política e diplomática em prol da paz entre povos, nações e Estados nunca esteve de todo ausente do horizonte de opções estratégicas de Portugal; e tal não deixou de encontrar ecos e reflexos no canto camoniano da presença lusíada no devir do mundo, quer enquanto história pregressa, quer enquanto projecto a cumprir-se.

Por um lado, a cruzada desde sempre postulara como contrapartida a paz e a concórdia entre os cristãos e a condenação das guerras fratricidas; nesse sentido, Portugal pôde optar por uma política de não ingerência nas querelas europeias, tanto mais quanto a expansão marítima assim o requeria — afinal, mais um dos pontos que Camões destaca n’Os Lusíadas. Por outro lado, como mostrou Luís Filipe Thomaz, «o patrocínio à evangelização na paz logo encontrou lugar na ideologia expansionista oficial».

A própria política que a antropologia cultural de Jorge Dias considerava de «assimilação por adaptação», acentuada para a Índia no último quartel do século XVI (quando Camões já lá não estava), não polariza a ideologia oficial, nem o pensamento geo-estratégico, nem a intervenção in loco; e a pretensa acção civilizadora — tangente da acção religiosa quando se impunha, perante povos «primitivos» ou «bárbaros», o dever de repor o direito natural contra práticas aberrantes como os sacrifícios humanos — também se via posta em causa quando os portugueses, tal como manifesta a poesia camoniana, se deparam nas partes das Índias e sobretudo no Extremo Oriente com civilizações desenvolvidas e culturas elaboradas.

De facto, o estatuto primacial coube ao ideal mais universal e transcendente que era o da evangelização — mas numa perspectiva que gradativamente levava o pensamento político português e a própria empresa ultramarina a desprenderem-se da apologia da «guerra santa» como solução sistémica, cedendo terreno à instrumentalidade das acções militares em ordem à promoção progressiva da paz universal.

Ironicamente, o vínculo entre a evangelização e o horizonte de paz universal decorre da convicção do Ocidente europeu de que o Cristianismo não era só a sua religião que deveria ser difundida ou imposta aos outros povos, mas sim a religião revelada como «lei de Cima» e mensagem de salvação para todo o género humano. Camões não deixa de partilhar aquela convicção e de crer, por conseguinte, que o Cristianismo será o futuro do mundo. Por isso, essa convicção providencialista inclui também a crença de que a Expansão portuguesa, inscrevendo-se no horizonte meta-histórico do Reino de Deus, é por Deus aprovada, querida e apoiada sobrenaturalmente (em sinais premonitórios, em intervenções protectoras, etc.).

Em Camões, como já antes em João de Barros e em António Galvão, a expansão de um «Portugal de todo o mundo» (como cantaria José Régio) serve para reconduzir o universo a Deus. Entre o «evangelho português», de Fernão Lopes, e o «Quinto Império», de Vieira, Camões não se limita a enaltecer um Portugal que dá prossecução à Reconquista fundacional. Camões canta um Portugal que se cumpre como «dado ao mundo por Deus, que todo o mande, / Pera do mundo a Deus dar parte grande» (I,6) e como senhor do que o Roger Crowley de Conquerors nomeia «Primeiro Império Global»; mas canta profeticamente Portugal como responsável pelo primeiro tempo de Globalização, num movimento complexo (Navegação e Descoberta, encontro de civilizações e culturas mais do que Conquista) que postula a universalização da «justiça natural» e da equidade inter-religiosa, até à pacificação planetária no avanço para a desejável adesão ao Cristianismo.

Este texto foi escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico, por vontade do autor.