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Camões Celebrado

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JB

José Augusto Cardoso Bernardes

Comissário-Geral do V Centenário das Comemorações do Nascimento de Luís de Camões

Introdução

Sabemos que as celebrações do passado (todas elas) se destinam a atrair a atenção sobre o presente. Não pode ser de outra forma: o passado que se evoca é construído e reconstruído de acordo com as necessidades que se fazem sentir em cada momento.

O país assinala agora uma efeméride redonda, que incide, ao mesmo tempo, sobre a figura, sobre a obra e sobre esse tempo especial que é, para nós, o século XVI. No caso do nosso poeta maior, essa aura abrange não apenas o plano cívico, mas também o educativo, o histórico-cultural e o estético.

Sinais de Aclamação

Luís de Camões morre em Lisboa, no ano de 1580. Alguns estranham o anonimato na morte. Afinal, a publicação de Os Lusíadas deveria ter-lhe assegurado um maior reconhecimento.

É verdade que existe a tença. Foi-lhe concedida na dupla qualidade de soldado e de poeta. Embora de valor relativamente modesto, e paga com irregularidade, não deixa de representar um sinal de aprovação.

A consagração virá só depois da morte e traduz-se sobretudo numa presença excecional nos prelos. Era através da letra de forma que se firmava a fama de um escritor. Nesse sentido, pode dizer-se que ninguém teve uma fortuna editorial tão intensa e continuada. Outros nomes grandes do nosso século de ouro (Gil Vicente e Sá de Miranda) foram sendo editados, mas de forma descontínua e rarefeita. Só os livros de Camões foram impressos, sem hiatos, desde 1572 até aos nossos dias.

O sinal mais recente de que o rasto de Camões permanece bem vivo no espaço público surgiu há pouco tempo, vindo de uma área imprevista. Refiro-me à atribuição do seu nome a um novo aeroporto. Como é sabido, a localização da infraestrutura originou uma das mais prolongadas e intensas controvérsias das últimas décadas. Em ambiente eleitoral ou fora dele, as diferentes forças partidárias prometeram decisões firmes e tecnicamente sustentadas. Até que, poucos dias após a posse, o Governo decidiu finalmente a sua localização. Esta atitude só pode ter um sentido: o nome de Camões continua a silenciar polémicas. O facto de esse mesmo nome ter sido associado a um lugar de chegada e de partida é bem aceite no Portugal do século xxi.

Fatores

Que fatores vêm favorecendo a visibilidade de um poeta que viveu há cinco séculos e escreveu num registo de língua tão afastado do nosso? A primeira causa desse fenómeno poderá ser a distância a que há pouco aludi. Sabemos como o afastamento temporal favorece a admiração. A proximidade aumenta o número de adeptos, mas não exclui os relutantes. Camões situa-se no tempo ideal para ser lembrado em associação com as grandezas, se for o caso, e com as misérias, que também denunciou.

Assim se explica que a sua figura tenha sido sempre vista com simpatia: tanto pelos protagonistas do poder, que se acham sempre mais atentos ao mérito do que aqueles que os precederam, como pelos contestatários do «injusto mando».

Os atributos ficaram registados pelos primeiros biógrafos: temperamento impulsivo, prisões, exílios, privações. Existem indicações contemporâneas disso mesmo: a carta de perdão concedida por D. João III que descreve os motivos que o levaram à prisão do tronco é muito reveladora; como significativo é o testemunho do cronista Diogo do Couto, que, além de ter evocado o convívio que com ele manteve no Oriente, o encontra na Ilha de Moçambique, sem recursos para continuar a viagem de regresso que iniciara em Dezembro de 1567, a partir de Goa.

O século xix, o século das pátrias, acentuou esses traços. É então que Camões surge como herói dos heróis ou absoluto da Pátria, tal como a entendia o romantismo.

As proclamações de patriotismo surgem sobretudo em Os Lusíadas. Se a epopeia possui um sentido central é justamente o de constituir um espelho de príncipes, escrito para um jovem monarca (D. Sebastião) que se acreditava ter sido enviado pela Providência para fazer ressurgir as grandezas do reino. A Dedicatória sobressai como algo de extraordinário: é incorporada no próprio poema, e não colocada em situação de preâmbulo como quase sempre acontece.

De resto, o poeta termina a epopeia não com a Ilha dos Amores, mas arrancando os heróis desse paraíso «pintado» para os devolver à História. Só assim poderiam servir de exemplo a D. Sebastião. As últimas 11 estâncias do poema (X, 146-156) permitem reatar o discurso direto. O elogio do rei que vinha do primeiro canto, converte-se agora em exortação e os «campos de Ampelusa» são apontados como terreno de reconquista. Neste sentido, o fundamento de Ourique deve ser lido como forma de ligar o rei de um tempo que empalidecia a um outro rei, de tempos dourados. Falo de Afonso Henriques, a quem o próprio Cristo tinha aparecido para assinalar um destino evangelizador.

Idolatrado pelos liberais, sem deixar de ser admirado pelos absolutistas, a figura de Camões é ainda venerada pelos republicanos. E se o Estado Novo fez dela bandeira de glória colonial, também é verdade que a democracia a tem vindo a aproveitar de muitas formas: como epítome de uma língua de vocação universal, como figura deambulante, rebelde, corajosa e visionária. Foram esses os fundamentos que o converteram no símbolo da diáspora que se enaltece, agora, em cada 10 de Junho. É ainda esse o suporte para a sua aceitação nos países de língua portuguesa.

O Ensino de Camões

O indicador mais forte da presença de Camões na vida portuguesa, porém, resulta da inclusão nos programas escolares. Ao contrário do que sucede com a generalidade dos autores, o poeta mantém uma presença central na disciplina de Português. Actualmente, é dado a conhecer a adolescentes entre os 14 e os 15 anos: no nono (épica) e no décimo ano de escolaridade (épica e lírica).

Essa presença intergeracional possibilita, por exemplo, que Inês de Castro, o Velho do Restelo ou o Adamastor (entre outras figuras) sejam incorporadas no discurso corrente com significados reconhecíveis por todos: a «linda Inês», evocando o conflito entre os direitos do coração e as conveniências do Estado, o velho representando temores e atitudes reacionárias, e o Adamastor equivalendo a obstáculos que requerem coragem e vontade de superação.

Camões e a Ideia Moderna de Literatura

A noção de que, tal como a conhecemos hoje, a ideia de literatura remonta ao século xviii (o tempo de autonomização das artes) é correta, mas redutora.

Ainda assim, podem identificar-se momentos em que essa afirmação se torna mais clara. Um desses momentos é, sem dúvida, o Renascimento e o processo de dignificação das letras humanas que lhe anda associado.

Os estudiosos desse período destacam Petrarca como intérprete do espírito de renovação que conduz à descoberta da consciência, abrindo caminho à visão moderna de autor. Embora presente na generalidade da sua obra, é no Canzoniere que mais se nota esta verdadeira revolução poética que consiste na autoanálise sentimental e, sobretudo, na construção da realidade através da escrita.

A influência exercida pelo poeta italiano nas letras europeias foi decisiva e prolongada. É nessa senda que devemos situar a obra de Camões. Não para renegar outras (muitas) influências que os anotadores e comentaristas foram registando, mas para sublinhar que o poeta português herdou sobretudo do poeta italiano uma ideia de literatura. Nessa ideia cabe a questionação, a especulação metafísica, a confissão elaborada, a busca profunda de uma verdade. Trata-se, no fundo, de encontrar um caminho novo para a poesia, situado algures entre retórica e filosofia. É justamente nesse quadro que surge a figura do poeta pensador, ou seja, daquele que não se limita a representar a realidade, mas se lança na aventura de a interpretar e reconstruir.

No que concerne à epopeia, a modernidade de Camões vai ainda mais longe. De facto, embora partindo de um dos traços fundamentais do género, o poeta português convoca a história (que, neste caso, é factual e bem próxima) para a corrigir através da escrita. Nesse sentido, vai espalhando sinais directos e indirectos de superioridade da poesia em relação aos acontecimentos que lhe servem de suporte. Não hesita em diminuir Vasco da Gama, o protagonista da viagem inaugural, quando, depois de o ter feito contar a História de Portugal ao rei de Melinde, lhe assinala a estranheza relativamente às musas:

Às Musas agradeça o nosso Gama

O muito amor da pátria, que as obriga

A dar aos seus, na lira, nome e fama

De toda a ilustre e bélica fadiga;

Que ele, nem quem na estirpe seu se chama,

Calíope tem por tão amiga

Nem as filhas do Tejo, que a deixassem

As telas d’ouro fino e o cantassem. (V, 99)[1]


[1] Cito pela edição d’Os Lusíadas, com Leitura, Prefácio e Notas de Álvaro Júlio da Costa Pimpão, Lisboa, Instituto Camões, 1992 (3.ª edição).

Mais ainda: faz recair sobre si a heroicidade do canto não compreendido e não agradecido:

A troco dos descansos que esperava,

Das capelas de louro que me honrassem,

Trabalhos nunca usados me inventaram,

Com que em tão duro estado me deitaram. (VII, 81)

Mas o que mais ressalta na obra de Camões (em qualquer um dos géneros que cultivou) é a ideia de autenticidade. Essa marca impressionou os comentadores de todos os tempos. Alguns têm vindo a ler a obra como se fosse, toda ela, confessional.

Assim sucede na lírica em particular. Basta pensar no impressionante soneto que (ao que tudo indica) foi escrito para servir de prólogo a toda a poesia camoniana. Falo daquele que começa com o verso

Enquanto quis Fortuna que tivesse[1]

Nele se rememora um itinerário que vai do engano ao desengano. O terceto que o encerra define a natureza autêntica do seu canto («Verdades puras são, e não deleites»), para logo definir um único plano de sintonia entre quem escreve e quem lê:

E sabei que, segundo o amor tiverdes,

Tereis o entendimento de meus versos.

Mesmo em Os Lusíadas, onde se esperava que a projeção subjetiva fosse menor, não faltam marcas fortes de pessoalidade. Onde o grito camoniano mais se faz notar é no desenlace da história do infeliz Adamastor. Depois de ter sido vítima dos seus impulsos e atraído a uma cilada feminina, o gigante dirige-se à amada, presentificando-a na dor:

Ó Ninfa, a mais fermosa do Oceano,

Já que minha presença não te agrada,

Que te custava ter-me neste engano,

Ou fosse monte, nuvem, sonho ou nada? (V, 57)

Desde Camões a poesia portuguesa não voltou a ser o que era. Essa é talvez a principal razão que explica um fenómeno que permanece único: tendo vivido e escrito no século XVI, Camões vem sendo tomado por «contemporâneo» de praticamente todas as gerações de poetas de Portugal e de língua portuguesa.

Desde há 500 anos, sem parar, até aos nossos dias.

Este texto foi escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico, por vontade do autor.


[1] Cito pela edição das Rimas, com texto estabelecido e prefaciado por Álvaro J. da Costa Pimpão, Coimbra, Livraria Almedina, 1994 (3.ª edição).