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O Legado Pessoa

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DG

Diego Giménez

Investigador do Centro de Literatura Portuguesa, Universidade de Coimbra

Há 90 anos, Fernando Pessoa escreveu o seu próprio epitáfio pouco antes de morrer, aos 47 anos, no Hospital de S. Luís dos Franceses (Bairro Alto, Lisboa), no dia 29 de novembro de 1935, com uma frase hoje amplamente conhecida e citada: I know not what tomorrow will bring. Pouco sabia o poeta, que faleceria no dia a seguir, que o futuro traria o reconhecimento nacional e internacional.

Os trabalhos de edição da sua obra começaram 7 anos após a sua morte, em 1942, a cargo de João Gaspar Simões e Luís de Montalvor. No final da década de 1960, começou o inventário do espólio. Paulatinamente, começou a ter-se consciência da espantosa dimensão do legado. A entrada da obra no domínio público, primeiro em 1985, 50 anos após a morte do autor, foi prorrogada para 70 anos, em consonância com as leis europeias. Apenas em 2005, a obra entrou definitivamente em domínio público, facto que multiplicou exponencialmente as edições pessoanas.

Um exemplo desse percurso editorial é o Livro do Desassossego. O poeta publicou apenas 12 fragmentos em vida, sendo o primeiro deles «Na Floresta do Alheamento», publicado na revista A Águia, em agosto de 1913, e o último «Na Perfeição Nítida do Dia», em A Revista, em 1932. Na famosa arca, encontraram-se aproximadamente 700 textos pertencentes ao Livro. Dos 12 textos publicados em vida aos 700, houve, e ainda há, uma grande margem para os especialistas se entreterem a tentar solucionar o puzzle que é a obra inacabada de Pessoa.

Jorge de Sena assumiu a responsabilidade de editar o Livro para a Ática em 1960, desde o seu exílio no Brasil. Acabaria por desistir do projeto em 1969. Pedro Veiga, conhecido como Petrus, pouco antes do início do inventário por parte da Biblioteca Nacional de Portugal, em 1961, fez uma coletânea de fragmentos que editou como Livro do Desassossego: páginas escolhidas (Arte & Cultura, Porto). Em 1982, veio à luz a primeira edição na Ática, a cargo de Jacinto do Prado Coelho, Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Entre 1990 e 1991, Teresa Sobral Cunha editou a sua própria versão para a editora Presença. Em 1998, foi a vez de Richard Zenith para a Assírio & Alvim. Em 2010, Jerónimo Pizarro fez a sua edição para a Imprensa Nacional Casa da Moeda. Finalmente, em 2017, foi apresentado o Arquivo LdoD (https://ldod.uc.pt/), um projeto da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (UC), alojado nos servidores da universidade, e da responsabilidade de Manuel Portela, hoje diretor da Biblioteca Geral da UC. O percurso editorial foi muito bem descrito por outro professor da UC, Osvaldo Manuel Silvestre, que disse, em «O Que Nos Ensinam os Novos Meios Sobre o Livro no Livro do Desassossego» (2014), que este podia resumir-se na fórmula Pessoa=Arca=Arquivo=Digital, ilustrando as fases de preservação e tratamento do legado, cuja última fase seria a digitalização.

O Arquivo LdoD é um arquivo único. Não existe outro arquivo que compare manuscritos originais com quatro edições e que ofereça aos leitores/utilizadores funcionalidades de edição e autoria. Anos depois da sua publicação, Manuel Portela falará de um simulador da práxis literária, mais do que de um arquivo com funções meramente representacionais. O arquivo, para o especialista, não representa apenas documentos existentes na arca histórica do Livro do Desassossego, mas também modela e descreve o processo a partir do qual uma obra emerge. «Essa modelação, na hipótese que depois veio a concretizar-se no Arquivo LdoD, tomou a forma de uma simulação em que os utilizadores são chamados a experimentar atos de leitura, edição e escrita como ações orientadas pela imaginação de um livro em construção. Por outras palavras, o Livro do Desassossego tornou-se num espaço de experimentação literária em sentido amplo. (…) Geralmente, os arquivos digitais tendem a focar-se sobretudo na emulação e transcrição dos documentos. O Arquivo LdoD não é apenas uma experiência com o Livro do Desassossego ou com as práticas de leitura, edição e escrita, é também uma experimentação bastante aberta com o meio digital. Houve duas perguntas que se foram retroalimentando no decurso do projeto: o que é possível fazer com este Livro? O que é possível fazer com este meio?» (Portela, 2022). O arquivo digital, ou simulador, é um portento da engenharia informática cuja complexidade lhe tem valido elogios internacionais. A codificação dos textos pessoanos, feita com a norma XML-TEI, um standard de marcação textual amplamente usado em projetos arquivísticos de Humanidades Digitais, permitiu codificar não apenas o texto, mas também a estrutura da obra, entre outros elementos textuais de crítica genética.

Esse tipo de codificação, pioneiro num arquivo literário em Portugal, foi adotado depois por outros arquivos semelhantes. Com o passar do tempo, no contexto atual das tecnologias de processamento de linguagem natural (PLN), associadas à comumente chamada inteligência artificial (IA), a utilização de normas de marcação, como o XML-TEI, poderá desempenhar um papel importante ao garantir a representação e a preservação dos documentos. A codificação de textos literários em português não só organiza e preserva a estrutura original das obras, como também facilita a sua integração noutros softwares e plataformas, incluindo as de PLN. Isto é, tanto supõe uma forma de garantir e preservar de forma controlada e sólida o legado literário de Fernando Pessoa online, quanto assegura a sustentabilidade perante possíveis mudanças tecnológicas, combatendo o desequilíbrio que o português enfrenta em contexto de representação tecnológica, predominantemente em inglês e chinês.

Para o especialista Richard Zenith (2022), numa das mais recentes biografias do poeta, Pessoa fez da experimentação literária uma forma de sublimar a vida em arte. Identidade, política, literatura e pensamento seriam objeto e resultado da experimentação literária. O futuro sobre o qual Pessoa não sabia está bem assegurado com projetos da envergadura do Arquivo LdoD, em que preservação e experimentação vão de mãos dadas na construção de conhecimento.

Portela, M. (2022, 10 de setembro). O Arquivo LdoD não é apenas uma experiência com o Livro do Desassossego ou com as práticas de leitura, edição e escrita, é também uma experimentação base. Literatura & Pensamento.

Silvestre, O. M. (2014). O Que Nos Ensinam os Novos Meios sobre o Livro no Livro do Desassossego. Matlit: Materialidades Da Literatura, 2(1), 79-98.

Zenith, R. (2022). Pessoa. Uma Biografia. Lisboa: Quetzal Editores.