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Santa Isabel, Consorte do Rei Trovador

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AR

António Manuel Ribeiro Rebelo

Investigador do Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, Universidade de Coimbra

Em 2025, assinala-se o 400.º aniversário da canonização da «Rainha mais Santa / Das Santas de Portugal», nas palavras do famoso poeta popular Henrique Rego, imortalizadas num fado pela voz inconfundível de Alfredo Marceneiro. Santa Isabel foi das figuras da nossa história mais aclamadas em verso ao longo dos séculos. E não é possível, neste breve espaço, fazer jus à riqueza da diversidade poética com que a sua figura foi exaltada ao longo dos tempos.

No dia 25 de Maio de 1625, o Papa Urbano VIII canonizava, em Roma, Santa Isabel, uma rainha que conheceu Coimbra no ano de 1282. António de Vasconcelos deixou-nos uma reconstituição muito poética do momento em que o jovem casal contemplou a cidade de Coimbra:

… dão finalmente entrada no pátio da Alcáçova real, que se erguia no lagar onde hoje são os Gerais da Universidade.

El-rei, que era poeta, e como tal admirador do belo, quis proporcionar logo de entrada a sua esposa, de alma também culta e sensível, um espectáculo de beleza singular. Conduziu-a a um dos terraços do paço, donde se avistava sem peias o horizonte em toda a roda. O panorama, àquela hora, era grandioso, indescritível, único.

O sol ia ocultar-se acolá, a ocidente, e ostentava o seu grande disco de ouro e púrpura liquescentes. Era um desses pôres-de-sol incomparáveis, duma beleza deslumbrante, como só em Coimbra se observam (…)

Nas suas deslocações pelo reino, D. Dinis fazia-se invariavelmente acompanhar por sua esposa, numa clara demonstração do peso que esta desempenhava também na condução dos assuntos de Estado. A documentação da época é elucidativa: o nome da rainha surge frequentemente ao lado do do monarca, refletindo o reconhecimento da importância da sua anuência e participação nas resoluções reais. Muitos dos documentos mais significativos começam com a fórmula: «Dom Denis, por graça de Deus rei de Portugal e do Algarve, en sembra (juntamente) com a rainha Dona Isabel, minha mulher…», um estilo singular que não encontra continuidade nos reinados subsequentes. A Rainha Santa distinguiu-se na arte da governação e da diplomacia sempre numa cumplicidade notável com o marido. Mais do que uma consorte, foi uma colaboradora eficiente e uma conselheira sagaz de el-Rei D. Dinis. Por isso, compartilha a glória do extraordinário reinado de D. Dinis, que soube consolidar o presente e projectar um futuro promissor para a nação. Tal admiração e respeito transparecem na obra poética do Rei Trovador. Entre as composições que os estudiosos acreditam terem sido dedicadas à Rainha, sua esposa, encontra-se uma que parece encapsular o espírito do seu tributo, dizendo, com justiça plena:

Pois que vos Deus fez, mia senhor,

fazer do bem sempr'o melhor

e vos en fez tam sabedor,

ũa verdade vos direi:

se mi valha Nostro Senhor,

érades bõa pera rei!

E pois sabedes entender

sempr'o melhor e escolher,

verdade vos quero dizer,

senhor, que sêrvi'e servirei:

pois vos Deus atal foi fazer,

érades bõa pera rei!

E pois vos Deus nunca fez par

de bom sem nem de bem falar,

nem fará já, a meu cuidar,

mia senhor e quanto bem hei,

se o Deus quisesse guisar,

érades bõa pera rei!

Em 1516, a pedido de D. Manuel I, D. Isabel foi beatificada, como relembra o Cancioneiro de Coimbra, de Afonso Lopes Vieira:

Ao Padre-Santo pediu

O Senhor Dom Manuel

Que Ihe confirmasse santa

A Rainha Isabel.

Esta Rainha tão santa,

Mulher d'El-Rei Dom Dinis,

Só fez por servir a Deus,

E ele fez quanto quis.

Todas as suas esmolas

Só em secreto as dava

E uma vez que, escondidas,

No regaço as levava,

Um cavaleiro privado

A El-Rei a delatava:

E El-Rei, de cobiçoso,

Acorreu, e perguntava:

— «Que levais aí, Senhora,

Nesse regaço tamanho?»

— «Eu levo cravos e rosas,

Que outras coisas não tenho!»

— «Nem sequer há maravilhas;

Menos cravos, em Janeiro!

Ou serão esmolas isso,

Ou isso será dinheiro?»

A Rainha não falou;

Só o regaço abriu

E eram cravos e rosas,

Que dinheiro... Não se viu.

[…]

D. João III foi grande devoto da Rainha Santa e determinou, em 1556, que, anualmente, no dia 4 de Julho, toda a comunidade universitária comparecesse no Colégio das Artes, para aí assistir a uma oração pública em louvor da Rainha Santa, feita por um dos padres da Companhia de Jesus. Essa vontade régia foi imediatamente inscrita nos estatutos da Universidade.

Nos anos seguintes, o Colégio das Artes dedicou boa parte da sua produção literária latina à bem-aventurada Rainha D. Isabel, como podemos ver por vários códices que reúnem o que os Jesuítas aí produziam, em poesia e em prosa, em latim, grego ou até hebraico, desde orações panegíricas a poemas, epigramas, odes, elegias, epitáfios…

O milagre das rosas era aí tema recorrente:

Larga suis olim cum munera ferret egenis,
Elisabeth, castos pene referta sinus,

Obvius ecce venit Dionysius ipse ferenti.
Quid fers? ille rogat; monstrat et illa rosas.

Floribus his Christus placitam nunc fulcit amantem,
Nexa comam pulchris stat rosa pulchra rosis.

Outrora, quando levava donativos generosos aos pobres,
Isabel, com seu casto regaço quase repleto.

Eis que Dinis, em pessoa, a encontra assim no caminho.
«O que levas?» pergunta ele; e ela mostra as rosas.

Com essas flores, Cristo agora sua amada sustenta,
E com as belas rosas tem a rosa bela o cabelo entrançado.

Dois dos seis códices fazem parte do acervo da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra.

Numa obra desta mesma época, na epopeia de Vasco Mouzinho de Quevedo Castelbranco, Discurso sobre a Vida e Morte de Santa Isabel, Rainha de Portugal (1595), a figura de Santa Isabel é erguida a um pedestal de fervor místico. Entre os momentos de grande beleza literária, seleccionámos um primoroso trecho dedicado ao célebre milagre das rosas, onde a mestria do poeta explora as qualidades da Rainha pelas virtudes evangélicas:

Da mão esquerda, a mão dereyta encobres

Que tão honesto, & tão santo exercício

A Deus só que te cobre, lho descobres

Tornando seu offício, por offício.

Entregas o que tens na mão dos pobres

Que te fazem no Céu rico edifício,

Aonde viverás leda, & contente

Sem pesares, & nojo eternamente.

E porque a caridade está conjunta

Com outra que nos Céus lhe corresponde

Há dia quando mais dinheiro ajunta

Que n’aba leva, & do marido esconde.

Encontra el Rey com ella, & lhe pergunta

«Rainha, que levais?» e ella responde

Com as faces coradas, & fermosas

«Para fazer grinaldas, levo rosas».

Com a sua canonização, em 1625, em plena União Ibérica, a Rainha Santa foi proclamada por Filipe III padroeira de Portugal. Com a redescoberta da nova santa, os poetas passaram a consagrar grande parte da sua produção à veneração da Santa Isabel.

O acontecimento da canonização deu origem a celebrações de assinalável grandiosidade na Lusa Atenas, cidade tão profundamente ligada à memória da Rainha Santa. A Universidade de Coimbra (UC), atenta à relevância do momento, participou ativamente nos festejos, promovendo iniciativas que realçavam a dimensão cultural e devocional do evento. Entre outras iniciativas, organizou um certame poético em honra de Santa Isabel, publicado em 1626, sob o título: Santissimae Reginae Elisabethae Poeticum Certamen dedicat, & consecrat Academia Conimbricensis Ivssv illustrissimi D. Francisci de Britto de Menezes a Consilijs Catholicae Maiestatis, & eiusdem Academiae Rectoris (A Academia de Coimbra oferece e dedica à Santíssima Rainha Isabel este Concurso Poético por ordem do Mui Ilustre D. Francisco de Britto de Menezes, Conselheiro de Sua Majestade Católica e Reitor da mesma Academia).

Reuniu textos em várias línguas, compostos em diferentes géneros literários, como odes, canções e sermões, oferecendo um testemunho da diversidade e popularidade da devoção à nova santa. Entre os temas mais abordados, está, obviamente, o milagre das rosas. Contudo, optámos por trazer à luz um excerto da «Canção V», que celebra o papel de Santa Isabel ao lado de D. Dinis na fundação da UC.

Por ti , Diva Isabel, por ti eminente

O Liceu, que se aplica a teus louvores

E tuas glorias magnânimo festeja,

Glorias adquira e sempre florescente

Jardim por ti produza, várias flores

De engenhos doutos apesar da Inveja;

Alegre sempre veja

Sua fama em seus alunos dilatada

Que em teu feliz auspício foi fundada

Por Dinis, quando tu com o Reino humano

Conquistavas o Eterno e soberano.

Mulher extremamente inteligente e culta, de uma lealdade inquebrantável, consultora sábia, prudente e discreta do marido, D. Isabel não seria completamente alheia à fundação da UC. E a academia bem lhe soube retribuir a atenção ao longo dos séculos.

Por tudo quanto dissemos, não há dúvida de que merece estar representada na Sala dos Capelos, onde D. Dinis se volta para a esposa e troca com ela um olhar, parecendo indagar a sua opinião. D. Isabel, por seu lado, acalma-o com um olhar de aquiescência, como que aprovando a fundação dos Estudos Gerais.

Este texto foi escrito ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico, por vontade do autor.