Applausos da Vniversidade a El Rey N. S. D. Ioão IIII
Fernando Taveira da Fonseca
De aguila excede el buelo, Pluma mia
Para escribir de un sol, que oy sale al mundo
(Applausos, fl. 104)
1.
A notícia do que sucedera em Lisboa no dia 1 de dezembro de 1640 começou a correr na Universidade de Coimbra (UC) no dia 4, ainda «incerta, vaga, duvidosa», suscitando comentários diversos: «muitos o não crerão por difficultoso, outros lhe davão crédito por justificado, e todos o dezejavão por verdadeiro»[1]. Haveria em Coimbra quem estivesse bem informado, uma vez que, no próprio dia dos acontecimentos, um agente do Cabido em Lisboa, Jerónimo Pinheiro, endereçara aos cónegos uma carta em que os relatava com algum pormenor[2]. As dúvidas cessaram, porém, logo no dia 5 de dezembro, desfeitas pela carta que os arcebispos governadores do Reino enviaram ao Reitor Manuel de Saldanha, noticiando que «sábado primeiro deste mês, a nobreza e povo desta cidade [Lisboa] appelidarão por Rei destes Reinos ao Duque de Bragança Dom Ioão», e ordenando que «nessa Cidade fação o mesmo, appelidando ao Duque por Rey»[3]. O Reitor «chamou a Conselho os lentes, e Deputados, e Conselheiros, e para se fazer com maior solemnidade, a nobreza das Escholas e os Reitores dos Collegios», incitando todos a «encomendar a Deus negócio de tanta consideração» e a «atalhar que não ouvessem (sic) desordens».
Os estudantes manifestaram-se com exuberância, logo nesse dia, e, no seguinte, dirigiram-se em grupo à Câmara, exigindo que, sem demora, se procedesse à aclamação do novo rei. Depois, acompanharam um vereador, a cavalo, proclamando em conjunto: «Real, Real por Elrey Dom Ioão o Quarto de Portugal». Entraram na igreja de Santa Cruz, onde o ofício de exéquias pelo aniversário da morte de D. Afonso Henriques se transformou em Te Deum, o mesmo acontecendo na Igreja de S. Jerónimo, onde a comunidade universitária, reunida para celebrar S. Nicolau, se juntou aos vivas e aclamações estudantis. Coloridas carreiras a pé e a cavalo, no terreiro das Escolas, luminárias noturnas, com simuladas batalhas e outros jogos que envolviam não só os membros da universidade (a que «se não quiseram eximir os Lentes velhos, Ecclesiásticos e frades») mas igualmente gente da «cidade e os povos circunvesinhos», preencheram os dias e noites seguintes, num júbilo unânime e partilhado.
Manuel de Saldanha reuniu o Claustro Pleno em 13 de dezembro, e enunciou o assunto principal: «Deus Nosso Senhor tinha restituído a este Reino Rei natural». Levantou-se, descobriu a cabeça «disse em voz alta por três vezes: Viva Elrey Nosso Senhor Dõ Ioão o Quarto e repetirão todos o mesmo»[4]. Fez menção de renunciar ao cargo — por ter sido nele provido por Filipe III —, mas não lho permitiram os circunstantes. Elegeram-se os representantes da Universidade para o beija-mão ao novo monarca e determinaram-se as celebrações que se seguiriam: préstito de capelos em 1 de janeiro de 1641 — de Santa Cruz à capela da Universidade —, com vésperas e propina dobrada aos participantes; missa cantada, no dia seguinte, oficiada pelo Reitor; solene oração em 3 de janeiro. Nesse mesmo dia, chegou carta do Rei, agradecendo as demonstrações de alegria com que tinha sido aclamado em Coimbra e confirmando Manuel de Saldanha no cargo. Fogos de artifício fecharam essa jornada que continuou, na noite seguinte com «huma mascarada de trinta e duas parelhas, todas de Lentes, Doutores e Estudantes […] lustrosamente vestidos». Uma soleníssima procissão em honra de Nossa Senhora e o tradicional préstito dos Reis (EM 5 e 6 de janeiro) concluíram este ciclo festivo.
Entretanto «decretarão-se premios […] a quem milhor louvasse a Sua Magestade em Poemas, e Epigrammas latinos, Canções, Sonetos e todo o género de versos nas três línguas, Portuguesa, Hespanhola, e Italiana». A adesão a este certame parece ter sido entusiástica e, em 8 de fevereiro, foram atribuídos os prémios em sessão solene na qual perorou o lente de Instituta, Jerónimo da Silva de Azevedo, «na sala grande dos autos que estava armada de pannos de rás e rodeada de Epigrammas e poesias».[5]
Tudo isto se passava enquanto a nova dinastia era formalmente inaugurada: D. João chegou discretamente a Lisboa no dia 3 de dezembro; no dia 15, teve lugar o «levantamento e juramento de Sua Majestade na coroa destes reinos e senhorios, por os Grandes, Títulos, Seculares e Eclesiásticos e pessoas da nobreza que se acharam presentes»[6]; o reconhecimento dos três estados — simultaneamente com o «juramento, preito e menagem» ao príncipe D. Teodósio, como sucessor — veio a formalizar-se no primeiro dia da reunião de Cortes, em 28 de janeiro.[7]
2.
A produção poética resultante do certame e exibida na sala grande dos atos foi compilada e depois impressa, no decurso do ano de 1641, por Diogo Gomes Loureiro, a expensas da Universidade e por ordem de Manuel de Saldanha. O volume resultante não tem propriamente um título. Na portada, uma gravura representando o monarca ladeado por D. Dinis e por D. João III exibe uma dedicatória: Invictissimo Regi Lusitaniae Joanni IV Academia Conimbricensis libellum dicat in felicissima sua acclamatione. A outra designação pelo qual é conhecido e catalogado — Aplausos da Universidade a Elrey N. S. D. Ioão IIII — aparece no cabeçalho dos fólios, os inumerados e depois quase todos os 125 restantes. Trata-se de um conjunto variado e heterogéneo, utilizando as quatro línguas permitidas (algumas vezes numa mesma composição), contendo formas e metros muito diferentes — poderíamos salientar os epigramas, as canções, os poemas épicos, os sonetos, alguns acrósticos — e quase sempre sob anonimato, de alguma maneira vincando o caráter institucional da autoria (afinal, é a Academia Conimbricensis que dedica este pequeno livro — libellum — ao rei). A interpretação de material tão variado poderia ser feita a partir de diversos ângulos — as ressonâncias da literatura clássica que nela se encontram poderia ser um deles[8] — e, como tal, está totalmente fora do âmbito de uma pequena nota como esta.
Há, no entanto, um pormenor com algum interesse. No fl. 51 v. de um exemplar existente na Biblioteca Geral da UC, uma anotação manuscrita refere: «Este epigrama acima foi feito pelo Lic.do Antonio Rebelo, que por ele mericidamente levou o primeiro Premio». O epigrama latino compara D. João IV com João Batista «em cujo nascimento se admiraram todos dizendo: quem virá a ser este menino? Porque a mão de Deus estava com ele».[9] No desenvolvimento deste mote (cuja tradução parcial oferecemos a seguir), a referência à mão de Deus repete-se quase obsessivamente:
Uma dupla concordância se manifesta entre João e João
Um era menino, o outro é rei de Portugal
[…]
Deus fez daquele o seu precursor, a este fê-lo rei
Pela mão de Deus aquele nasce e este governa.
Do seio da Virgem estendeu Deus a mão para o menino
Para que não fosse precursor sem o poder de Deus
A este confiou Deus o ofício de rei e confirmou-o
Estendendo-lhe a mão desde a cruz.
Quem virá a ser este menino? Quem virá a ser este rei?
Já que a mão do Senhor está igualmente com um e com o outro.
Subjacente a este epigrama está um episódio ocorrido no dia 1 de dezembro de 1640: executado o plano de «tirar um rei e pôr outro» (como terá dito João Pinto Ribeiro), defenestrado depois de fatalmente ferido, Miguel de Vasconcelos, dirigiram-se os protagonistas à Sé de Lisboa, onde se encerrara com a clerezia, aguardando o desfecho dos acontecimentos, o arcebispo D. Rodrigo da Cunha. Dali todos se encaminharam processionalmente para o Paço. Durante o percurso, junto à igreja de S. António, «huma imagem de prata de Christo crucificado (…) despregara o braço direito», o que deu azo a que o povo «prostrado em terra» interpretasse este facto como milagre e sinal de que «Deos approvava a gloriosa deliberação dos confederados»[10].
A interpretação providencialista da Restauração de 1640 teve notória fortuna. Na coletânea que vimos referindo é recorrente — pode mesmo ser uma das suas chaves de leitura — e está presente noutros textos. Na Restauração de Portugal Prodigiosa[11], refere-se que um dos indefetíveis de D. João IV, o Marquês de Ferreira, asseverara que dois anos antes da aclamação, uma pessoa, em Évora, lhe dizia que «via a Christo Senhor Nosso, lançar o seu braço direito sobre este Reyno de Portugal». O Duque de Bragança seria, deste modo, o ponto fulcral onde convergiam o cumprimento da promessa feita a Afonso Henriques em Ourique e a esperança de um Quinto Império de paz universal.
Bibliografia:
Applausos da Vniversidade a El Rey N. S. D. Ioão IIII (Invictissimo Regi Lusitaniae Ioanni IV Academia Conimbricensis libellum dicat in felicissima sua acclamatione), Coimbra, [Iussu Emmanuelis de Saldanha]: Diogo Dias Loureiro, 1641.
Almeida, M. Lopes, Notícias da Aclamação e de Outros Sucessos. Coimbra, 1940.
Conselhos da Universidade, Arquivo da UC, 1640.
Silva, J. J.de Andrade e, Colecção Chronologica da Legislação Portuguesa, 1640-1647, Lisboa, 1856.
Simões, André, Figuras Homéricas na Literatura da Restauração, artigo em acesso aberto, 2023.
[1] Applausos, fl. in.
[2] Almeida, p. CIII.
[3] Applausos, fl. in.
[4] Conselhos, fl. 73.
[5] Applausos, fl. in. (para as expressões entre aspas).
[6] Silva, Collecção, 15.01.1641.
[7] Ibidem, 28.01.1641.
[8] Vd. Simões.
[9] Applausos, fl. 51 v.
[10] Ericeira, tomo 1.º pp. 111-112.
[11] Almeida, p. 161.