Rute Silva aka Intermediária
Há qualquer coisa de profundamente coimbrão no que aconteceu nas noites de quinta-feira, no viaduto da Ponte Rainha Santa. Ali, onde o betão devia ecoar apenas os roncos do trânsito e o zunido dos pneus, nasceram versos — fortes, crus, ligeiros ou provocadores — trazidos à vida na Roda ao Centro. É improvável e, ao mesmo tempo, tão natural. Uma extensão de algo que sempre esteve cá. Afinal, Coimbra sempre foi terra de poetas; mudou apenas o timbre da lira e a métrica da pena.
A alma poética em Rima e Ritmo
Desde as primeiras trovas medievais que Coimbra nutre o dom da palavra. Pela Rua da Sofia, já ecoaram poemas que cortavam tão fundo quanto as guitarras de fado, e a Universidade de Coimbra (UC) foi cúmplice dessa tradição literária: uma incubadora de trovadores com causas a defender. Com Amália Rodrigues e José Afonso elevando o espírito literário da cidade, parecia difícil imaginar que algo pudesse rivalizar o impacto do fado nas vidas locais.
Mas a cidade também respira outras cadências. Assim como os poetas coimbrãos rimaram amores e dissidências em versos calculados e esculpidos, hoje, os praticantes do hip-hop encontram na rima improvisada o novo fado da urgência. Chamam-lhe freestyle.
À primeira vista, pode parecer estranho comparar uma desgarrada de rimas — muitas vezes barulhenta, crua, com vocabulário explosivo — à melancolia clássica dos fados de Coimbra. No entanto, o princípio é o mesmo: a busca do ritmo certo, o desafio da criatividade imediata, a missão de convencer quem escuta. Mais ainda, tal como os poetas do passado usavam o palco da serenata para ganhar aplausos (ou talvez o coração de alguém), os improvisadores enfrentam hoje o olhar atento de câmaras de telemóvel e os juízos implacáveis do público. A batalha continua: palavra contra palavra.
As paredes têm ouvidos
E não é só na palavra dita que a nova geração de poetas prospera. Olhem para os muros de Coimbra. Onde outrora Luís de Camões talvez deixasse versos declamados numa roda de amigos, as gerações urbanas escreveram nos muros — nem sempre com pinceladas de arte elevada, mas em gritos de inconformismo. «Eu estou aqui e tenho algo a dizer» é o que murmura o grafitti rabiscado, à pressa, em qualquer parede. A ironia não foge: os conservadores da cidade caminham lado a lado com esta poesia das esquinas, sem a ler ou entendê-la como forma artística, mas esta é, muitas vezes, a forma de Coimbra falar consigo mesma.
E por que é o grafitti menos poesia do que as quadras que um dia ornamentaram as capas pretas dos estudantes? Onde está escrito que a arte precisa do refinamento para contar uma história? Há nas paredes aquilo que há nos microfones das batalhas da zona centro: urgência. Vidas que se cruzam. Amores gritados sem preâmbulos, desilusões cuspidas em fonemas carregados de raiva, de paixão ou de incerteza.
A Roda ao Centro
Foi neste espaço de intersecção que surgiu a Roda ao Centro. Sob o betão, improvisadores de diversas idades, bairros e experiências culturais enfrentaram-se em duelos rítmicos. Mas o duelo foi apenas um pretexto. O importante é a roda: aquele símbolo arcaico de comunidade, intimidade e cumplicidade. O público rodeia os performers em círculo, unidos pelo desafio de ouvir ou reagir. A roda não se esgota na performance: ela persiste, encarna diálogos informais, nas saídas depois dos eventos, ou nos círculos mais amplos que reúnem outras formas de expressão artística como grafitti, beatbox e a dança.
Os poetas do século XXI têm rostos diferentes, alguns vêm da UC, outros não — mas têm algo essencialmente coimbrão: sabem falar de si para todos. Trouxeram pessoas de Portugal inteiro até à cidade, para participar ou observar este espetáculo que transformou o skate park num anfiteatro moderno.
Mais fascinante ainda foi a evolução: aquilo que nasceu como um espaço de experimentação em Coimbra não ficou estagnado. Viveu, morreu, e ressuscitou através das rodas que brotaram à sua volta. Hoje, esse modelo replica-se noutras cidades e espalha o vírus positivo do hip-hop como elemento cultural — transformando o que podia parecer apenas rebeldia num grito coordenado de partilha artística.
O desafio do improviso
Se pensarmos bem, o improviso não está tão longe da tal tradição literária coimbrã que muitos romantizam como alicerce cultural da cidade. Aliás, quem já assistiu a uma desgarrada, talvez num ambiente rural, verá as semelhanças com uma batalha de rimas. O desafio verbal de um combate — atacar, defender, criar argumentos em cima do momento — obedece à lógica da competitividade poética que sempre residiu no coração da cultura oral. Troque-se o cavaquinho pelo beatbox, troque-se a plateia de adegas por uma audiência que rodeia o espetáculo na rua.
Improvisar é poesia. É refletir a tensão do momento num turbilhão de palavras certeiras. Não há lapidação possível, nem meses de ponderação — mas há ritmo. Há harmonia entre som e intenção. E há, acima de tudo, o pulsar de algo vivo: a palavra, liberta e inquieta, em total sintonia com a atmosfera do instante.
Coimbra tem mais encanto quando é absorvida
Nas cidades como Coimbra, nem sempre ligamos ao que merece atenção: ignoramos os versos nas esquinas, as declarações pintadas nos muros, e — de forma menos desculpável — as rodas como esta, onde se reinventa o velho espírito poético. Preferimos olhar para os dias dourados do passado, quando a melodia era fadista e os versos transbordavam de melancolia.
Mas os poetas de Coimbra nunca desapareceram. Trocaram o traje pela camisola larga, os livros de versos por microfones. Há, porventura, algo de desafiante e desconcertante nesse novo formato, mas quem o ignorar estará a perder a pulsação de uma cidade que continua a ser uma incubadora de poesia. Se Coimbra tem versos escritos nas pedras, tem também no eco das vozes que elevam cada esquina.
Então, aos que veem as novas formas de arte com ceticismo: ouçam as batalhas e digam que não sentiram o mesmo arrepio das primeiras serenatas. Que não perceberam, afinal, como a poesia nunca morreu. Apenas mudou a métrica.