Mattia Faustini
Mesmo que toda a escrita poética seja escrita para ser lida, nem sempre parece ter sido escrita para ser falada.
Nos eventos de Poetry Slam — que também em Portugal e em Coimbra têm vindo a acontecer pelo menos há uma década —, o caráter oral da escrita volta a surgir, junto ao corpo do texto e do/a seu/sua autor/a.
A prática conhecida como Poetry Slam (ou Slam Poetry, quando referido aos textos desse género de escrita enquanto tal) é uma das articulações recentemente assumidas pelas leituras de poesia no espaço público, misturando elementos de poesia, performance, teatro e storytelling, também com o intuito de democratizar o seu acesso. Em poucas palavras, enquanto o vasto universo da spoken word («poesia falada», ou escrita para ser «atuada») se articula sobretudo na relação musical entre palavra e ritmo, a especificidade do Poetry Slam assenta num maior envolvimento de dinâmicas performáticas: a relação poética continua a ser entre palavra e ritmo, mas a dimensão musical é, neste caso, mais corpórea e coparticipada — isto é, composta pelo respiro coletivo da poesia em jogo e da sua receção por parte do público.
Surgido no seu formato na década de 1980, nos Estados Unidos, o Poetry Slam visa, desde então, a convocação simultânea de autores e audiências, seja onde for, incentivando uma participação diversificada pela plateia perante os textos e os corpos que os pronunciam, na arena discursiva que constitui a própria substância da cidadania.
O histórico impulsionador dessas iniciativas, Marc Smith, considerava que três papéis deveriam ser desempenhados em simultâneo para isso: o do Mestre de Cerimónias (MC), apresentando os/as poetas candidatos/as e conduzindo o evento; o dos próprios poetas intérpretes, no espírito da competição (slammers); e, por fim, o do público e do júri popular (composto por pessoas sorteadas da plateia).
Além disso, embora a realização da competição possa ganhar feições particulares conforme o espaço e o contexto social em que se realiza, há pelo menos três regras que são geralmente respeitadas na realização de um Poetry Slam: um limite de três minutos (passados os quais o/a poeta pode incorrer em penalidades na pontuação que lhe será atribuída); a necessidade de os textos apresentados serem autorais; e, por último, a proibição de elementos cénicos ou outros objetos para o efeito da performance.
No curso do evento, várias rondas de leitura são efetuadas de forma a estabelecer quem, entre os concorrentes, terá a possibilidade de apresentar mais textos e, eventualmente, ganhar a competição. Ainda há a eliminação, pois, do valor menor e daquele maior entre as pontuações atribuídas pelos jurados após cada leitura.
Tais características mantiveram-se na progressiva difusão internacional da prática do Poetry Slam, que ocorreu de 1990 até aos dias de hoje. Difusão que constou na proliferação de numerosos coletivos locais, bem como na interligação em rede entre eles, internacional (como o campeonato mundial de Poetry Slam, cuja organização está baseada em Paris) ou nacional (como é o caso, em Portugal, da «Plataforma SLAM», surgida em Lisboa em 2014).
A Secção de Escrita e Leitura da Associação Académica de Coimbra (SESLA/AAC) encontra-se em funcionamento desde finais de 1997, sediada no prédio da AAC e pelas ruas da cidade de Coimbra, mantendo, desde então, relações com diversos coletivos e organizações, em Portugal e no estrangeiro. Nestes 27 anos de existência (durante os quais realizámos, entre saraus e tertúlias, apresentações de livros, oficinas de escrita e ocupações literárias pela cidade — um número impreciso de eventos na ordem da centena), pela sala das nossas reuniões passaram textos e publicações de nossa autoria, mas sobretudo provas de leitura e de escuta recíprocas. Tais como aquelas que também teriam facilitado, mais recentemente, o surgimento do coletivo Slam das Minas (2020) e das suas oficinas e iniciativas. Ou também como aquelas que permitiram trazer para Coimbra poetas e professores/as de calibre como Fernando Aguiar, Adriana Calcanhotto, Graça Capinha, Nuno Moura, Raquel Palmira e muitos mais.
A adesão da SESLA à plataforma Portugal SLAM ocorreu em 2016. Assim, competições anuais têm vindo, desde então, a acontecer na cidade — embora os primeiros Slams em Coimbra remontem a 2011, organizados pelo coletivo aranhiças e elefantes.
Também no intuito de descentralizar a competição nacional, poucos anos depois de a SESLA ter assumido um papel mais ativo na plataforma, a competição nacional de Poetry Slam chegou a ser realizada em Coimbra, em 2021. Data que marca também a vitória de Carol Braga, membro do Slam das Minas e primeira mulher a ganhar o Poetry Slam em Portugal. Antes dela, outro membro da SESLA tinha conquistado o título nacional em 2019, Lucerna do Moco.
Se toda a escrita poética permite, de alguma forma, «dizer algo» que, de outra forma, seria indizível, isso é ainda mais verdade no caso da poesia Slam. Nestes eventos, «passar uma mensagem» está literalmente ao alcance de qualquer um. Mas não só: também é possível ficar em silêncio e encarar o público, gaguejar, sussurrar, tremer ou gritar. Uma exceção — esta última e extrema modulação vocal — que pode tornar-se a regra.
Sempre houve, desde que nasceu, certa aversão a esse formato de leituras, se não diretamente aos textos apresentados. Há todo um conjunto de músicos, poetas, críticos e curiosos que podem torcer o nariz a algumas dessas performances. O elemento da competição entre slammers, em particular destaca-se, não raras vezes, como o alvo das dúvidas dos detratores, sejam eles mais ou menos aguerridos. E, talvez, mais ainda do que isso: as reações e os padrões sociais que esse formato de leituras pode desencadear no público. Penso, por exemplo, no uso abusivo da palavra-chave «credo» — gritada por vezes excessivamente pela plateia com o intuito de pressionar os/as jurados/as (em minoria), quando a pontuação atribuída for simplesmente menor do que 9 valores em 10.
Quem está agora a refletir sobre este ponto não é, de resto, uma das pessoas que melhor poderia prestar uma defesa adequada ao Poetry Slam. No entanto, o Poetry Slam representa, como todas as invenções mais recentes da poesia em relação ao (seu) público, algo vulnerável.
Parte das acusações ao Slam têm objetivamente que ver com as fraquezas do humano que dá a ver: a natureza humana, demasiado humana, da poesia. Ou melhor, de querer reinventá-la. Coisa essa que a poesia e os poetas parecem ter cessado de exigir de si há já algum tempo.
É ainda verdade, de resto, que, muitas vezes, tais ataques limitam-se a uma postura defensiva e superficial à frente do que está em jogo nestes eventos. Revelam assim, esses detratores, também as suas fraquezas, ao mesmo tempo que as escondem.
Fica muito mais fácil observar essa obviedade do que participar e intervir sobre (ou sob) ela.