A ciência pode ter poesia?
Um problema nunca tem uma só dimensão, e temos de ser capazes de invocar muito(s) conhecimento(s) para o abordar.
João Ramalho-Santos
Há coisas que se ensinam em Comunicação de Ciência entre pares, ou seja, não dirigida a um público mais geral. Além de evitar títulos longos e especializados, uma delas é ter cuidado com o uso de pontos de interrogação no título de um artigo. Há a ideia que, de forma subliminar, o sinal dado pela pontuação aponta para a resposta dada no texto subsequente nunca ser claramente afirmativa. Quando não for um simples e enfático «não».
Pois seja esta uma exceção que não confirma a regra.
Na verdade, se há coisa que a ciência sempre teve foi poesia, embora por vezes toldada por noções de beleza (a perfeição simétrica, por exemplo) que nem sempre refletem o mundo e quem o habita. Visões essas que até podem influenciar o modo como sintetizamos o conhecimento científico. A ciência é complexa, tem muitos cambiantes e condicionantes, muito ruído e erro. Não deixa de ser natural que as inevitáveis simplificações generalistas que se têm de fazer, se úteis do ponto de vista prático-tecnológico, quase sempre se revelem incapazes de capturar essa riqueza de forma integral. O que, por sua vez, leva a interpretações abusivas daquilo que é uma imperfeição crónica, nas quais a certeza parece mais certa do que, na verdade, é.
Daí que a ciência tenda a ser quase sempre vista (injustamente) de forma binária, entre a beleza sublime e uma construção fria. Fernando Pessoa deu eco disso mesmo com recurso aos seus heterónimos:
De Álvaro de Campos:
O binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo.
O que há é pouca gente para dar por isso.
A Ricardo Reis:
Deixemos, Lídia, a ciência que não põe
Mais flores do que Flora pelos campos,
Nem dá de Apolo ao carro
Outro curso que Apolo.
Contemplação estéril e longínqua
Das coisas próximas, deixemos que ela
Olhe até não ver nada
Com seus cansados olhos.
Passando por Alberto Caeiro:
Todas as opiniões que há sobre a Natureza
Nunca fizeram crescer uma erva ou nascer uma flor.
Toda a sabedoria a respeito das cousas
Nunca foi cousa em que pudesse pegar como nas cousas;
Se a ciência quer ser verdadeira,
Que ciência mais verdadeira que a das cousas sem ciência?
Ou Fernando Pessoa, «ele mesmo»:
A CIÊNCIA, a ciência, a ciência...
Ah, como tudo é nulo e vão!
A pobreza da inteligência
Ante a riqueza da emoção!
Culminando na síntese particular-geral do inesgotável Bernardo Soares:
O homem de ciência reconhece que a única realidade para si é ele próprio, e o único mundo real o mundo como a sua sensação lho dá. Por isso, em lugar de seguir o falso caminho de procurar ajustar as suas sensações às dos outros, fazendo ciência objectiva, procura, antes, conhecer perfeitamente o seu mundo, e a sua personalidade. Nada mais objectivo do que os seus sonhos. Nada mais seu do que a sua consciência de si. Sobre essas duas realidades requinta ele a sua ciência. É muito diferente já da ciência dos antigos científicos, que, longe de buscarem as leis da sua própria personalidade e a organização dos seus sonhos, procuravam as leis do «exterior» e a organização daquilo a que chamavam «Natureza»
Claro que, ao intimamente ligar (como era inevitável) razão e emoção, o trabalho de António Damásio pode ter ajudado a desbloquear uma dicotomia que nunca fez nenhum sentido. De forma a podermos olhar com mais confiança para a ciência, de um modo não apenas técnico, mas holístico e humano. Um problema nunca tem uma só dimensão, e temos de ser capazes de invocar muito(s) conhecimento(s) para o abordar. Essa síntese foi, de resto, brilhantemente antecipada na poesia de António Gedeão, o poeta por trás (ou pela frente? ou nada disso faz sentido?) do notável professor de Físico-Química, divulgador e historiador de ciência e educação, Rómulo de Carvalho.
Esse olhar mais global é particularmente relevante hoje, num tempo de extensa reorganização das lógicas do sistema científico nacional. Um sistema que (infelizmente) se habituou a produzir muito e bem com pouco, mas onde à falta de financiamento e de uma estratégia nacional de desenvolvimento se junta o culminar de décadas de políticas que promoveram ativamente a incerteza, e o empurrar com a barriga de problemas. Ao que agora se pode acrescentar o aproveitamento cínico por quem foi parte integrante do problema e atua como se nunca tivesse tido responsabilidades. Pior ainda, tivesse soluções, não científicas, mas mágicas. Em ciência, como em tudo o mais, o sucesso tem dezenas de mães e pais, o não-sucesso tende a ser órfão.
Adília Lopes sintetiza bem este tipo de situação, num tom que tem tanto de certeiro quanto de absurdo:
O burro puxa
o carro
o carro puxa
o burro
graças ao atrito
que tudo resolve
do sexo ao ciclotrão
o carro anda
o burro anda
e a lei da ação-reação
não é violada
mas esta história
está mal contada
Ou, resumindo com o mote de um poema de António Aleixo:
— Onde nasceu a ciência?…
— Onde nasceu o juízo?…
Calculo que ninguém tem
Tudo quanto lhe é preciso!
A questão é teimar sempre, o mais e o melhor possível, na procura de soluções que nunca serão as ideais. E juntar à esperança uma dose razoável de pragmatismo. No poema «I Am Waiting», o poeta beat norte-americano Lawrence Ferlinghetti declara estar perpetuamente a aguardar um renascimento da maravilha. Como Alberto Caeiro declarava sentir-se nascido a cada momento para a eterna novidade do mundo. Acontece que a novidade e a maravilha podem surgir espontaneamente (e surgem), mas também se trabalham, muito. E este é um desígnio urgente, como avisa Manuel Alegre, no final do seu poema «Chegar Aqui», particularmente apropriado neste contexto, trocando «Portugal», por «Universidade de Coimbra»:
Não há dúvida temos um passado
Talvez de mais
Talvez tanto que não deixa lugar para o futuro
Mas fomos pelo mar chegámos longe
E agora Portugal o que será de ti
Se não formos capazes de chegar
Aqui.
P.S.:
Este texto é dedicado, com muito amor, aos meus pais
Maria Irene Ramalho
Boaventura de Sousa Santos
Que homenageio no meu nome, com o hífen possível