/ Caminhos na UC

Episódio #60 com Luis Lomenha

A academia como um espaço promotor de encontros entre pessoas e linguagens artísticas

Publicado a 30.12.2024

Luis Lomenha chegou a Coimbra, vindo do Brasil, pouco antes de a pandemia de COVID-19 mudar as nossas rotinas, privando-nos do contacto diário com outras pessoas. E, assim que tudo começou a fechar, acabou por ficar na cidade e decidiu inscrever-se no Doutoramento em Arte Contemporânea do Colégio das Artes da Universidade de Coimbra (UC). Hoje, anos depois de ter tomado essa decisão, movido pelo interesse em dialogar com pessoas de diferentes áreas artísticas, o percurso do cineasta fica marcado por essas trocas de ideias e de experiências, que vieram enriquecer o seu percurso no cinema, fortemente orientado pela missão de combinar a fantasia com o mundo real para contar histórias, chamando a atenção para realidades tantas vezes deixadas em segundo plano.

Quando e como começou o seu percurso na UC?

Há já algum tempo. Na altura, em 2005, tinha lançado a minha primeira curta-metragem e vim exibi-la a Coimbra, no Centro de Estudos Sociais, a convite da professora Tatiana Moura. Este foi o meu primeiro contacto com a Universidade de Coimbra.

Em 2019, vim para Coimbra para acompanhar a minha companheira, que veio fazer doutoramento. A minha expectativa era acompanhá-la durante algum tempo, mas voltar para o Brasil, pois estava a fazer uma série. E, para surpresa de todos, veio a pandemia. Tudo foi interrompido e eu acabei ficando aqui um tempo maior do que tinha previsto.

Já com uma longa carreira como cineasta e produtor, por que decidiu fazer um doutoramento?

Em 2020, tomei conhecimento da existência do doutoramento [em Arte Contemporânea], quando conheci o professor Pedro Pousada num evento [um dos coordenadores do programa doutoral]. Vi que estavam com inscrições abertas e acabei por me candidatar. Estava a escrever uma série resolvi me aventurar nessa história do doutoramento e, para minha surpresa, acabei por ser aceite.

E tem sido uma experiência muito interessante. As aulas calharam no meio da pandemia e tivemos uma parte das aulas online, mas ainda tivemos uma boa parte presencial. A minha turma era muito grande, com pessoas que já tinham uma longa trajetória nas artes, e muito diversa, de diferentes linguagens artísticas e a gente teve uma troca muito intensa. Penso que a clausura imposta pela pandemia gerou essa necessidade de as pessoas estarem juntas, de falarem. O período de aulas presenciais foi muito intenso e muito proveitoso, que guardo num lugar muito especial.

O que o levou a escolher o Doutoramento em Arte Contemporânea do Colégio das Artes da Universidade de Coimbra?

Quando vi o professor Pedro Pousada a falar no evento que referi há pouco, ele falava da diversidade dos alunos e das linguagens do programa doutoral. E as artes visuais sempre foi algo que me interessou muito. Sempre me interessei por videoarte e por organização de exposição. Acho que têm uma forma semelhante à maneira como se estrutura para escrever uma história. O doutoramento foi um universo muito diferente para mim – que não tive um percurso académico –, mas sempre gostei de experimentar o novo. E levo essa experiência para a vida.

Falando do seu percurso profissional, como surgiu o percurso no cinema?

Comecei com o Carnaval do Brasil. O meu pai era compositor, e fui trabalhar no Carnaval como ajudante. Esse foi o meu primeiro contacto com as artes. Depois, fui para o teatro e aí passei um bom tempo, escrevendo e produzindo. E, nessa sequência, tive oportunidade de fazer um filme, o “Cidade de Deus”, que foi um grande marco do cinema brasileiro. Depois deste filme, nunca mais saí do cinema.

Fui passando por muitas áreas, começando bem debaixo mesmo, sem uma formação propriamente dita em cinema – a minha formação é em Literatura –, mas acho que foi superimportante ter entrado no cinema nesse lugar, de ter passado por quase todos os departamentos e de ter trabalhado com muita gente, para perceber a importância de cada departamento do cinema.

Até chegar na direção, foi uma trajetória muito longa, de mais de 15 anos, muitos a trabalhar como assistente. E isso, sem dúvida, gerou um repertório muito grande, experiência e conhecimento. Tive uma experiência também muito longa como documentarista, que me deu uma bagagem do entendimento do tempo, da escuta. Trabalhar muito a escuta de personagens e a pesquisa de forma muito profunda contribuiu muito para o meu trabalho na ficção, principalmente para o tipo de linguagem que trabalho: mesclar o fantástico com o real.

O que procura sempre mostrar nas suas produções?

Trabalho sempre com uma coisa que costumo chamar de uma miscelânea de linguagens. Por exemplo, a série que fiz recentemente [“Os Quatro da Candelária”], acho que tem bastante disso: parte de um tema real e trágico, mas a gente consegue trabalhar a beleza desse tema sem abrir mão da mensagem social.

Acho que as minhas histórias passam muito por esse universo. Não trabalho a tragédia só pela tragédia, de uma forma vertical ou olhando a desgraça do outro ou de um povo de uma forma muito de fora; entro na história para dar alma. A história tem alma e tem beleza, mas não pode abrir mão de comunicar o que ela veio comunicar.

Penso que isto que estou descrevendo tem uma base muito forte do Carnaval. O Carnaval consegue fazer uma espécie quase de antropofagismo: você pega num tema duro e traz uma plástica de beleza muito grande com muitas cores, mas você passa o recado, e provoca uma grande reflexão em torno do tema. Acho que os meus projetos passam muito por esse lugar: re-significar histórias duras ou trazer histórias de povos que, muitas vezes, estão na invisibilidade.

Pretendo seguir cada vez mais trabalhando isso, pesando com a mão da fantasia, que é uma coisa em que acredito muito, sobretudo numa linguagem de realismo fantástico latino-americano, que está muito no DNA da literatura sul-americana e que quero trazer para o audiovisual, sob influência de Gabriel Garcia Márquez, de Dias Gomes e de Ariano Suassuna.

Estreou recentemente, na Netflix, a minissérie “Os Quatro da Candelária”. O que retrata este trabalho?

Há muitos anos, fiz um documentário, chamado “Luto como Mãe”, que parte de uma pesquisa de Tatiana Moura e que fala sobre a luta de mulheres que perderam os filhos, vítimas de violência do Estado, mostrando o processo da luta ao luto. E elas falavam muito de que todo o foco da notícia ou da imagem era muito centrado nelas e que pouco se via dos filhos, a não ser os corpos deles estendidos no chão. E elas tinham muito a vontade de ver os filhos para além dessa memória. Então, esse documentário começa na Chacina de Acari e, na sequência, na Candelária e segue até ao início do século XXI, até à Chacina da Baixada Fluminense.

Na sequência desse trabalho, deu-me vontade de pensar como seria falar dessas crianças a partir de um lugar de sonho e assim nasceu “Os Quatro da Candelária”. O sonho é algo inerente a todo o ser humano, independentemente de onde se está, mas a forma como é interrompido é diferente.

A gente conseguiu fazer parceria com a Netflix e contar a história a partir dos sonhos dessas crianças, com uma mensagem de esperança e através de uma ideia um pouco disruptiva, saindo de linguagens convencionais de pure crime e indo para um lugar mais de fantasia, mas sempre sem abrir mão da mensagem e da dureza do tema.

Tentámos provocar a reflexão e chegar a um público diferente, e penso que conseguimos. O streaming tem essa coisa interessante, que mostra para a gente exatamente onde a gene passou. E a gente tem um público imenso de periferia, sobretudo de pessoas com menos de 30 anos que não estavam ainda entre nós na época do acontecimento, que são os maiores espectadores e que acabam por interagir com a série numa dinâmica de redes sociais. Isso, sem dúvida, foi muito interessante. A gente pensou nesse público e conseguiu-o atingir.

Que mais-valias considera que o ambiente académico trará ao seu percurso como cineasta?

O que faz a universidade são os estudantes. A minha experiência não é tanto de um académico, não tenho um trânsito dentro da academia, mas a minha experiência com a minha turma, em especial, foi muito enriquecedora. Eram pessoas mais velhas e com uma trajetória muito grande no campo das artes, e estar trocando experiências na diferença é algo muito rico. É um espaço que a universidade consegue proporcionar para os seus estudantes, sobretudo estudantes de doutoramento. No tempo que passei no doutoramento, conheci pessoas muito especiais, que vou carregar para sempre. Hoje, com algumas já a defenderem as suas teses, vejo o quanto amadurecemos desde 2020/2021, e isso é muito enriquecedor. Esse é, para mim, um aspeto muito forte: o ambiente que a universidade acaba por proporcionar.

Além disso, a cidade tem uma atmosfera que favorece a escrita: a sensação de que o tempo passa de forma diferente, um pouco mais lenta, talvez como passava antigamente. A sensação que eu tenho aqui é que o tempo passa mais devagar, e isso para a escrita é muito propício. É muito bom ter ambientes onde você pode sentar e deparar-se com o silêncio. Tanto assim é que, agora que terminei a série, estou escrevendo um filme e voltei para cá para poder escrever.

O que mais marcou o seu percurso na Universidade de Coimbra até ao momento?

O que mais me marcou foram os seminários do doutoramento com essa turma tão especial. Tínhamos discussões muito calorosas. E, apesar das dificuldades, com todo o mundo de máscara, foram momentos muito especiais, dos seminários aos cafés. Isso dá muita saudade – essa palavra tão especial que só tem na língua portuguesa.

Que mensagem gostaria de deixar à comunidade UC?

Considerando o meu papel, que vim para a academia nesse momento da minha carreira, acho que a mensagem é seguir proporcionando encontros. Porque, afinal, é isso que move o mundo: fazer com que as pessoas estejam próximas, pensando juntas, discutindo... pensando em melhorias para a vida, para o planeta. E eu penso que isso é o papel da universidade.

E a gente veio de um momento em que os encontros estavam proibidos, e quando a gente se encontrava era algo muito de conforto. Por mais que pareça que o mundo caminha para esse lado do individual, das experiências individuais, acho que nada vai substituir a experiência coletiva de uma sala de aula, da troca, do encontro. E a minha mensagem é essa: seguir fazendo com que o encontro seja algo normal na vida dos seres humanos.

Assista ao vídeo desta entrevista:

Produção e Edição de Conteúdos: Catarina Ribeiro, DCOM; Inês Coelho, DCOM

Imagem e Edição de Vídeo: Ana Bartolomeu, DCOM

Edição de Imagem: Sara Baptista, NMAR