/ A Biblioteca

Biblioteca Joanina

Casa da Livraria

A Biblioteca Joanina da Universidade de Coimbra — nome que hoje designa, enquanto extensão da moderna Biblioteca Geral da Universidade, a que foi, até à constituição desta, simplesmente a Casa da Livraria universitária, como durante mais de dois séculos seria conhecida — deve o seu nome ao monarca sob cuja égide se verificou a sua edificação: D. João V, o Rei Magnânimo, como historicamente ficaria conhecido, em legítima consagração da sua extensíssima ação mecenática, em prol da cultura, da ciência e das artes e que nesta biblioteca, justamente, assentaria um dos ângulos do seu programa cultural.

Tendo, nas suas origens, a velha imposição estatutária da existência de uma biblioteca pública na Universidade, a sua construção, em pleno palácio universitário, decorreria entre 1717 e 1728 e nela, bem como na sua sumptuosa decoração, colaborariam numerosos artistas, interagindo em rara harmonia, por forma a convertê-la na mais extraordinária biblioteca universitária do mundo, precioso escrínio ornamental onde se conserva um importantíssimo acervo bibliográfico.

Com uma história longa, não isenta de vicissitudes, a Casa da Livraria alcançaria, não obstante, chegar aos nossos dias com o seu esplendor intacto, fascinando sem cessar as centenas de milhar de visitantes que anualmente aí dirigem os seus passos.

1716

Na verdade, entre o pedido do reitor, que terá estado nas origens da nova biblioteca da Universidade, e a resposta do Rei, firmada a 31 de outubro de 1716, uma subtil alteração dos dados do problema iria suceder. De facto, enquanto o magistrado universitário se referia à organização de uma sala adequada à instalação da livraria, em face do mau estado em que se encontrava a dependência afeta a esse uso (ou para ele prevista) o monarca pronunciava-se no sentido de encontrar no Pátio da Universidade local para edifício adequado. Ao invés do que seria de esperar, a graça régia ampliava significativamente a ambição da Escola. E, do mesmo passo, autorizava também a aquisição da biblioteca particular do Dr. Francisco Barreto, entretanto falecido.

É nesse contexto, pois - ocupado pelas dependências universitárias e pelo Colégio de S. Pedro todo o recinto do antigo Paço Real, que vem a escolher-se uma localização então exterior ao recinto original e onde era possível tirar partido de infra-estruturas já edificadas, em concreto os restos arruinados do antigo cárcere palatino, construído em finais do século XIV, no tempo de D. João I. A biblioteca configurar-se-ia assim como uma edificação de acentuada verticalidade, fundamental para vencer o elevado desnível.

Desse modo, incorporaria, no piso térreo, destinado a armazéns, os restos do antigo cárcere, ainda parcialmente sobrevivente (a cadeia de que a Universidade dispunha, como corporação privilegiada, situava-se, desde finais do século XVI, sob a Sala dos Capelos e apenas em finais do século XVIII seria transferida para aqui), destinando-se o andar intermédio, concebido como suporte do superior, a casas de aluguer e abrindo as salas públicas para o terreiro universitário. A edificação, aliás, obrigaria a prolongar o pátio em mais de um terço, numa obra de enorme envergadura, que imporia também a organização de uma nova serventia, pelo lado sul: as escadas de Minerva, em substituição de outras que a construção da biblioteca obrigaria a destruir.

1717

A magna empresa da construção da biblioteca nova teria começo em 1717, sendo a primeira pedra solenemente colocada, em presença do reitor, em 17 de julho, iniciando-se os trabalhos sob a direção de João Carvalho Ferreira, mestre-de-obras da Universidade. Menos de um ano volvido, porém, surgem controvérsias sobre a sua capacidade para a interpretação da planta, sendo substituído à frente do estaleiro por Gaspar Ferreira, inicialmente contratado para a realização das estantes e que viria a revelar-se um artista capaz, do ponto de vista técnico e dotado, aliás, de uma especial sensibilidade no plano ornamental, indispensável em obra com semelhantes características.

1722

A obra de pedraria ficaria concluída em 1722, altura, porém, em que já se haviam iniciado os trabalhos interiores de construção das estantes e demais carpintarias.

Entretanto, ainda nesse ano eram contratados em Lisboa os pintores António Simões Ribeiro e Vicente Nunes para a decoração dos tetos, bem como o pintor-decorador Manuel da Silva, que deveria ornar as estantes de chinoiseries.

1725

Enquanto isso, bronzistas, latoeiros, vidraceiros e um sem-número de artistas e artífices eram paralelamente utilizados, nos seus diversos ofícios. Entre estes, destaca-se, evidentemente, o italiano Francesco Realdino, estabelecido em Lisboa e contratado em 1725 para a realização das seis sumptuosas mesas de leitura (bufetes), concluídas dois anos depois, realizadas em madeiras preciosas e que ficariam como obras-primas da marcenaria setecentista.

A empresa seria dada por concluída em 1728, datando de 1724 o lançamento das escadas de Minerva, a que a construção da biblioteca obrigaria. A documentação mantém, contudo, um silêncio inescrutável a respeito do autor dos planos da biblioteca universitária. Todavia, o confronto entre as duas obras (a elegantíssima biblioteca e as escadas, riscadas num gosto barroco de carácter regional pelo mestre construtor Gaspar Ferreira), bem como o sistemático recurso a artistas de Lisboa para a execução dos trabalhos de maior responsabilidade (como os tetos e as mesas), aliado ao papel de forte protagonismo desempenhado pelo Rei no processo da edificação da biblioteca (fora a sua decisão que motivara a construção do novo edifício, em oposição ao pedido universitário de reforma de uma dependência pré-existente), bem como, mesmo, a controvérsia suscitada sobre a capacidade de João Carvalho Ferreira de interpretar os planos da obra (por conseguinte exteriores à Universidade) obriga a que se aceite, como fortemente plausível, a autoria de um dos artistas do círculo régio.

E, neste contexto, há fundadas razões - desde logo a sua familiaridade com o edifício universitário, onde colaborara, entre 1699 e 1702, na decoração escultórica da nova ala das aulas (Gerais) - que apontam para a responsabilidade de Claude de Laprade, escultor francês, natural de Avignon, estabelecido em Lisboa desde inícios do século XVIII, onde dividia a sua atividade entre o trabalho da pedra e o da madeira (escultura e retábulos), com maior sucesso na clientela nacional; sendo certo que a obra da Biblioteca alia de extraordinária forma ambas as valências, promovendo uma brilhante síntese das tendências nacionais e internacionais dos inícios da centúria.

1731

Três anos depois da obra concluída, a Universidade contratou a execução dos números de bronze dourado que hoje se podem ver aplicados nas estantes. Esta empreitada não tinha sido prevista (tanto que os números vieram sobrepor-se e obliterar os desenhos pouco antes pintados a ouro nas prateleiras) e decorre da incapacidade de colocar todos os livros universitários nos locais previstos: na Sala 1 (da entrada), os de Matemática e Medicina, na Sala 2 Leis e Cânones, na Sala 3 Artes e Teologia. Verificada a impossibilidade de os distribuir classificadamente para livre-acesso à estante, os bibliotecários tiveram de dar-lhes uma localização fixa, uma cota do tipo estante-prateleira-número de ordem, organizando-os de forma muito mais económica, por tamanhos. Isso implicou a execução de grandes catálogos de assuntos, que serão dos mais antigos que se conhecem em Portugal. As portas de rede também são uma adição posterior, possivelmente já de finais do século XVIII ou dos inícios do século XIX.

Década de 1930

Na verdade, uma violenta intervenção realizada na década de 30 do século XX, com o objetivo de promover uma falsa harmonização da biblioteca com o conjunto dos edifícios universitários, acabaria por desvirtuar gravemente o edifício em relação ao projeto original, de vincada plasticidade e, aparentemente, mais filiado numa sensibilidade escultórica do que propriamente arquitetónica.

Com efeito, o edifício fora concebido como um paralelepípedo, disposto em altura, por modo a vencer o elevado desnível entre o terreiro e a área circundante chamada Pedreira, em clara autonomia em relação ao conjunto do antigo Paço Real, encostando-se, como uma adição, à cabeceira da capela. Quanto aos dois pisos inferiores à cota do Pátio, no primeiro dos quais de incorporariam os restos do antigo cárcere real, seriam tratados como um poderoso podium, de onde, partindo de uma base de cantaria (correspondente ao andar térreo), se elevavam quatro pilastras, rematadas por elegantes cartelas decorativas, em correspondência com o andar intermédio abobadado, destinado ao uso dos professores e sublinhando, de igual modo, a repartição superior das salas de leitura. No que respeita ao andar nobre, onde as grandes janelas de iluminação, viradas a sul, se modelavam apenas, livremente, na alvenaria das paredes, assinalando-se, tão somente, por cornijas misuladas, os pequenos vãos inferiores, de iluminação dos gabinetes privados, surgia coroado por um opulento entablamento ressaltado, vincando o ritmo das aberturas com parelhas de longas mísulas e de urnas ovadas. Na fachada de acesso, voltada ao Pátio, o portal nobre surgia assim com a monumentalidade e a grandiloquência de um arco de triunfo, enquadrado por parelhas de enormes colunas jónicas monolíticas e centrado no imponente escudo das armas reais, atraindo inevitavelmente o olhar do observador menos atento.

Toda esta harmonia lastimavelmente se quebrou, perdendo-se a leitura original do edifício, apenas visível ainda, parcialmente, em velhas fotografias anteriores ao restauro e na fachada norte, onde não chegou a intervenção dos serviços oficiais, por se encontrar então oculta por outros edifícios (uma nova sala de leitura erguida em 1913 e entretanto demolida). Mas de tudo nos indemniza a sumptuosa decoração que o interior alberga, ainda intacta, como o seu autor a idealizaria.