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[csl1] Enquadramento, Google Earth, dezembro, 2023 |
Camões salvando Os Lusíadas ou Camões depois do naufrágio (Largo de S. João)
"Estes criticos de meia-ligeia só sabem vêr Luis de Camões, cego de de um olho, com uma corôa de louros na cabeça e uma pena e um livro nas mãos e não o querem já mais ver, montra atitude escultórica" (A. Gonçalves)

O Monumento a Luiz Vaz de Camões não era (é) o único que invocava o poeta em Coimbra. Menos lembrada e ainda menos amada, existe uma estátua da autoria de António Fernandes de Sá (1874-1959), que representa Camões com ar trágico, após o seu naufrágio. O monumento foi encomendado por D. Carlos. em 1902, e tinha como local de destino o Ministério da Guerra (Museu de Artilharia), no entanto, foi devido ao seu ar trágico e não à representação do ícone herói de guerra, que o monumento foi desprezado. A escultura em pedra “Camões salvando Os Lusíadas” estava assente sobre um pedestal e esteve exposta no Largo de São João, mesmo em frente à Igreja de São João de Almedina, à entrada do Museu Nacional Machado de Castro (MNMC), contudo, teve a mesma sorte do Monumento a Camões.
Apoiando-se com a mão direita sobre a rocha onde estava sentado, Camões segurava Os Lusíadas com a mão esquerda. Foi António Augusto Gonçalves Neves (1848-1932), arqueólogo, artista, fundador da Escola Livre das Artes do Desenho (1878), professor de Desenho na Escola Brotero e na Universidade de Coimbra, primeiro director do Museu Machado de Castro (1911), historiador de Arte, crítico, e polemista vigoroso, que, em 1924, obteve do Ministério da Guerra, o seu deposito a título precário para o Museu Nacional de Machado de Castro (MNMC). Esteve exposta no pátio exterior de um verdadeiro palácio quinhentista, até que, em 1935, se resolveu retirar da entrada do MNMC uma quantidade de elementos que causavam uma espécie de poluição paisagística, incluindo a escultura de Camões.
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[csl3] Camões salvando Os Lusíadas |
[csl4] Camões salvando Os Lusíadas |
[csl2] a [csl4] Camões salvando Os Lusíadas (Largo de São João, Igreja de São João de Almedina e Museu Nacional de Machado de Castro)

Retirada do pedestal, foi colocada ao centro das escadarias de acesso à porta da Secção de Ourivesaria, no dia 12 de Setembro de 1938 (AMNMC, Diário do Museu (1934-1943). Contudo, em 1951, foi despachada para o Parque da Cidade. Não esteve lá muito tempo! Na sessão de Câmara do dia 20 de abril de 1958, o Presidente propõe que no Parque, no local onde esteve a escultura dedicada a Camões, seja colocado o busto em mármore de Antero de Quental da autoria do escultor Diogo de Macedo, na altura pertencente à Câmara de Lisboa, à qual ia pedir oficialmente a sua cedência (cedida em 29 de maio de 1958).

É um facto, estas andaças da Estátua advinham sobetudo de também não aceite em Coimbra, basicamente, porque não correspondia à imagem épica de Camões, de coroa na cabeça, vestido de gala, olhando à direita, empunhando a pena ou a espada e cingindo ao peito um livro de meia encadernação. Nesta polémica, o Jornal "A Defesa", publica a 4 de Setembro de 1924, um artigo de António Gonçalves, com o seguinte teor: Não pretendo fazer reclame ao artista [Fernandes de Sá], que, de mais, vive ausente, no Brasil.
Se aponto esta nota é simplesmente no intuito de conter a fúria mordaz e lapuz da ignorância pretensiosa que já deu princípio à tarefa de emporcalhar o pedestal da estátua, propalando que foi condenada por defeituosa e rejeitada por indigna de figurar no Museu de Artilharia para onde era destinada.
O ministro da guerra, o sr. Major Américo Olavo, afastando com firmeza obstáculos e objecções regulamentares, fez valer a sua iniciativa generosa e dotou o Museu Machado de Castro e a cidade com uma obra de arte por outros cobiçada. Forçosamente há-de ter em recompensa a ingratidão de quantos malévolos patetas e inúteis medram neste infecto torrão!
Num ambiente mais claro, de honradas intenções, esta concessão seria um acontecimento a registar jubilosamente, como oferta valiosa de embelezamento da cidade. Neste bambúrrio, em que vivemos, passa desapercebido, porque, para os hermafroditas da opinião, como aspiração de progresso, basta a sórdida praça de touros no Rocio de Santa Clara!
[...]
Mas a estatuária votada à glorificação dos homens célebres tem imposições cultuais, quase preceitos canónicos, e não comporta liberdades revolucionárias de invenção e capricho.
No Museu de Artilharia não tem cabimento outro Camões que não seja o grande épico na erecção solene da imortalidade, na suprema apoteose da glorificação nacional!
O mísero naufrágio, perante o mundo, os deuses, a história e a eternidade, é um incidente biográfico sem importância – como um acesso de varíola, ou uma estocada à traição.
Colocado, porém, num jardim público, iluminado pelos raios do sol, polindo a transparente alvura do mármore de Carrara, acariciado pelos olhares dos transeuntes, o Camões, salvo das ondas, esplende na contemplação e no culto da alma popular!
E deixar taramelar a perversidade dos pedantes e ignaros detractores, aturdidos na persuasão absurda de que as aptidões cultivadas podem valer menos que os talentos de geração espontânea, que a cada passo os deslumbram!...”
Sobre a falta de estética, veja-se como o assunto foi largamente debatido nos diferentes jornais da cidade, chegando-se a propor, com alguma aceitação por parte de Vergílio Correia, que a escultura fosse mudada para o Penedo da Saudade, embora tal solução não tivesse provimento. Entre outros, “A estátua de Camões do Museu Machado de Castro vai ser mudada para o Penedo da Saudade”, O Despertar, n.º 1603, 10 de Dezembro de 1932; “A estátua de Camões do Museu Machado de Castro vai ser mudada para o Penedo da Saudade”, Diário de Coimbra, n.º 891, 11 de Dezembro de 1932; “A estátua de Camões”, Diário de Coimbra, n.º 896, 16 de Dezembro de 1932; “A estátua de Luís Vaz de Camões e a sua mudança para o Penedo da Saudade”, O Despertar, n. º 1605, 17 de Dezembro de 1932; “O caso da Estátua. Um Camões que pesa 3 000 quilos e anda agora em bolandas”, Gazeta de Coimbra, n.º 2975, 17 de Dezembro de 1932; “Ainda a estátua de Camões e a nossa atitude”, O Despertar, n.º 1 607, 24 de Dezembro de 1932; Chi-Nai-Kinon (pseud.), “Reposteiro chinês. O museu e o Camões”, Gazeta de Coimbra, n.º 2978, 24 de Dezembro de 1932; “Ainda a estátua de Camões e a nossa atitude”, Diário de Coimbra, n.º 905, 25 de Dezembro de 1932; Ernesto Donato, “Ainda a estatua de Camões. Á margem do que aqui se escreveu”, O Despertar, n.º 1 608, 28 de Dezembro de 1932. In Memorial de um complexo arquitectónico enquanto espaço museológico: Museu Machado de Castro (1911-1965)
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[csl5] Camões segurando Os Lusíadas, Pátio Interior do Museu Machado de Castro, MNMC, 1939 |
Percebe-se que a estátua só esteve exposta no parque durante sete anos, mas, foi o tempo suficiente para ser ridicularizada e causar grande amargura a António Gonçalves. Definitivamente, a obra era considerada non grata por se entender que não apresentava qualidade artística suficiente (falta de estética).
Ao invés de procurarem algo novo para a discussão coimbrã, tornou-se a perder tempo com “velho”. O que fazer à estátua? As opiniões dividiram-se novamente. Entre dar-lhe maior destaque no Parque ou movê-la para o Penedo da Saudade ou, ainda, para uma praceta junto da Cidade Universitária. A 22 de fevereiro de 1958, sem mais, foi retirada do local. Está neste momento à Sé Velha, escondida no jardim do antigo Museu da Ciência e da Técnica (Mário Silva).
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[csl6] Parque Manuel Braga, Coleção BMC-J |
[csl7] Antigo Museu da Ciência e da Técnica, [sc], 2023 |

Trilogia dramática: Portugal em vésperas de cair sob o domínio estrangeiro; Camões - vida atormentada! - naufragara no mar da China; a estátua que tão eloquentemente o simboliza, cerca de quatrocentos anos mais tarde, cumpria o triste fadário de não ter repouso. Ela que tanto dignificaria um belo parque! [1]


Outras fontes:
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Isolino Vaz, em "Boletim da Associação Cultural dos Amigos de Gaia", n.º 1, Abril de 1976 [1]


Paulo Simões Lopes, dezembro de 2023
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