/ Atividades

Tesouros da BGUC

Qualquer biblioteca com uma história de mais de 500 anos de funcionamento reuniria, mesmo sem querer, um fundo importante de manuscritos e de livro antigo, que hoje ganha um estatuto patrimonial evidente. Mas, para além deste fenómeno inevitável de acumulação, sabemos que o primeiro «Bibliotecário» da Livraria da Universidade, o Doutor António Ribeiro dos Santos (1745-1818), procurou e adquiriu afincadamente obras que já no seu tempo tinham caráter de tesouros bibliográficos, por exemplo bíblias latinas manuscritas dos séculos XIII e XIV. Com efeito, bíblias góticas (ou raros incunábulos) já não preenchiam no seu século quaisquer necessidades da leitura corrente: comprá-los é atitude bibliófila em cumprimento de um programa «iluminista» onde estes tesouros garantem à biblioteca uma «Fama» de riqueza, ganhando uma importância simbólica muito para além da meramente utilitária. Possuí-los era fazer parte de um restrito clube de grandes bibliotecas eruditas.

A coleção de preciosidades que se vai constituindo a partir de 1777 é formalizada com uma sala própria, o gabinete dos «Cimélios». pelo Bibliotecário António Honorato de Caria e Moura ( ? -1843), depois de 1814. Dessa sala, outrora anexa à Joanina, sobrevive hoje apenas a porta de entrada com a palavra «CIMÉLIOS» pintada a dourado numa cartela. Do grego keimélion (joia), os «Cimélios» eram, então, aqueles objetos preciosos, únicos ou raros, que hoje normalmente se incluem no conceito de «Reservados» de uma Biblioteca.

Para o conceito de «Tesouro» não relevam apenas a Raridade e o Valor, mas a Estética, a Proveniência e o Significado. A mera raridade (ou mesmo, no caso dos manuscritos, a singularidade) não determina um valor; porque este tem a ver com uma procura, depende de modas, em última análise. O apelo estético também ajuda, mas não nos parece essencial para a definição de «Tesouro». Mais importante será a proveniência (no caso de bibliotecas a legalidade da aquisição quase não se coloca, mas a notoriedade dos anteriores possuidores deve referir-se), e determinante será o «fator wow», aquela singularidade inesperada que acaba por atrair realmente o interesse do público. Finalmente, é essencial a relação emocional que é possível estabelecer com o item, porque «em última análise, a qualidade de Tesouro não está no objeto em si mas nos olhos de quem o escolhe e mostra e de quem o vê e disfruta».

Segundo esta definição, vários documentos podem ser considerados «Tesouros» da Biblioteca Geral da UC. Alguns são de importância mundial, como a bíblia hebraica manuscrita dita de Abravanel, obra peninsular de que sobreviveram pouco mais de uma dúzia de exemplares equivalentes: trata-se de um manuscrito iluminado da Escola Andaluza adquirido na Holanda pelo Doutor Manuel Pedro de Mello (1765-1833) e incorporada nos fundos da Biblioteca a 3 de fevereiro de 1857. Nesse tempo, a Universidade ainda podia abalançar-se a aquisições como esta, de que hoje estará completamente afastada, pela concorrência de instituições mais ricas, sejam da Europa, dos Estados Unidos da América ou do Japão. Uma bíblia latina das 48 linhas, os dois volumes impressos na oficina que tinha pertencido a Gutenberg pelos seus antigos sócios Johannes Fust e Peter Schöffer (Mogúncia, 1462) também facilmente será um «tesouro» de nível internacional pela sua raridade e valor. Até num nível meramente nacional, falando por exemplo da primeira edição de Os Lusíadas (1572), algumas das preciosidades que possuímos seriam hoje muito difíceis de adquirir no mercado.

Nas sessões dos «Tesouros da BGUC» que a Liga dos Amigos da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra (LIBUC) organiza há muitos anos, já foram apresentados documentos como a «Crónica de Nuremberga», a «Bíblia Atlântica», a 1.ª edição de «Os Lusíadas», o dactiloscrito da «Praça da Canção» de Manuel Alegre, o «Armorial poético» ou a carta do astrónomo Cristóvão Borri para Dom André de Almada, que ficou 400 anos dentro de um livro de astronomia.

Se qualquer destes exemplos constituem, qualquer ponto que seja o ponto de vista, um «Tesouro» bibliográfico, outros vêm a sua classificação afetada pelo apreço crescente ou decrescente do público e dos especialistas, muito dependente do tempo e das modas. Um caso clássico é o dos incunábulos e dos periódicos, muito valorizados até há uns anos e cujo interesse tem regredido muito. Caso oposto é o da iconografia, da cartografia e de toda a efémera, durante muitos anos desvalorizadas nas bibliotecas e agora trazidas ao primeiro plano dos interesses dos investigadores.

A importância da fotografia é um fenómeno recente, do século XXI: na obra «Tesouros da Biblioteca Geral» (2009) chamamos pela primeira vez a atenção para a coleção de fotografias antigas da BGUC. Talvez no século XIX fosse difícil considerar precioso o álbum Monumentos architectonicos de Coimbra, mas hoje não sofre contestação a importância técnica que a foto da Biblioteca Joanina aí incluída terá enquanto primeira fotografia bem-sucedida de um interior realizada em Portugal.

Como aconteceu com a noção de Sítio, que se desenvolveu no século XX a partir da clássica noção de Monumento, não poderão alguns conjuntos ser considerados «Tesouros» bibliográficos? Não o serão realmente a rica coleção de livros de coro de Santa Cruz de Coimbra, o espólio de Almeida Garrett, os códices de Dom Flamínio, os livros de infância de Mário de Sá-Carneiro, as caixas das provas fotográficas da Exposição 17 de abril ou o conjunto de manuscritos de Língua Geral do Brasil?

A profusão e variedade dos «Tesouros» que conserva contribuem para o estatuto único da BGUC entre as bibliotecas universitárias portuguesas.