Freak Show Park
“Freak Show /ˈfriːk ˌʃəʊ/ noun: in the past, an event at which the public came to look at people and animals that had not developed normally” (Cambridge Dictionary)
“A partir do imaginário das feiras populares e dos parques de diversões, onde as atrações resultam das subjetividades de como o Humano determina os limites da normalidade” (Folha de Sala, www.tagv.pt/*freak-show-park-de-andre-rosa/ TAGV, 2016)
André Rosa trouxe Freak Show Park, no dia 11 de março de 2016, para a Sala do Carvão da Casa das Caldeiras, em Coimbra. O simplismo e minimalismo da cenografia poderiam ser considerados, ao início, desconfortáveis. Para quem esperava ver o interior de uma tenda listada a vermelho e branco, algodão doce, pipocas e maçã caramelizada, encontrar luz vertical incidindo numa sala ocupada por quatro zonas pode ter sido um pequeno choque.
Depois de divulgado por plataformas online, cartazes e pela programação do Teatro Académico de Gil Vicente, o Movimento Sem Prega apresentou um conjunto de quatro performances diferentes entre si onde André Rosa, Andreia Morado, Daniela Proença e Pedro Vaz se oferecem à interação com o público. Durante duas horas, sem obrigatoriedade de estar presente do início ao fim, o Movimento Sem Prega ofereceu um Carnaval que nos leva de volta a meados do século XVI, uma espécie de feira de aberrações, onde cada uma das quatro ações em simultâneo nos convidam a compreender cada indivíduo como único.
Após um quente convite da anfitriã, personificada por Cristiane Werlang (professora de teatro na Universidade do Rio Grande do Sul e doutoranda em Estudos Artísticos na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra), o público entrou no circo e deparou-se com quatro espaços ocupados pelos quatro performers. Não havia portanto música de carrossel. Não havia música de todo. Não havia sequer som, pois este foi construído ao longo dos minutos.
A performer Daniela Proença, caracterizada com um baggy romper bege, aborda o público à entrada, com balões amarelos virgens espalhados pelo chão, oferece alguns ao público, enche um e brinca com ele e com o público, que lho devolve, atirando-o ao ar. Pouco depois, a performer torna-se possessiva em relação aos balões e coloca-os dentro do romper, até que quase deixa de haver espaço para colocar mais e torna-se numa forma que lembra as figuras disformes do ballet triádico da Bauhaus. Um jovem do público interage a certa altura de forma agressiva relativamente ao sentimento de possessão da personagem e, com uma caneta, começa a rebentar os balões que lhe estão colados ao corpo.
O performer Pedro Vaz encontra-se sentado em frente a uma mesa com um sintetizador. Somente de robe de banho branco e headphones colocados, espera que alguém se sente à sua frente. O público, então, senta-se, vez a vez e coloca os headphones previamente posicionados em cima da cadeira que os aguarda. O performer manipula sons enquanto olha fixamente quem toma o lugar à sua frente. Enquanto nos olha, com uma expressão apática que fura a alma a quem quer que se sente com ele, há a tendência de explorar e tentar compreender os desenhos e as frases MAMIHLAPINATAPE e THE SHARED LOOK OF DESIRE BETWEEN TWO PEOPLE TOO SHY TO MAKE THE FIRST MOVE espalhados em folhas de agenda soltas em cima da mesa. Desenhos naïve, abstratos, dicromáticos. O som que o público ouve é o som que o performer executa, a amplitude sonora aumenta ao ponto de semicerrar os olhos, por não aguentar os decibéis, o som torna-se familiar e existem sorrisos do público.
Andreia Morado apresentou-se unicamente encasulada em fio vermelho. Num estilo Abramovićiano, encontrava-se rodeada de dois rolos de fio vermelho, uma catana, um cutelo, uma navalha, uma caneta, tesouras e facas. O público começou por ser cauteloso, sem saber o que fazer com a performer. Toda a gente sabia que se podia, que era suposto, intervir. No início, os fios vermelhos foram sendo cortados. Os objetos cortantes eram postos nas suas mãos à vez, ora contra a performer, ora em modo de empoderamento. A catana foi arrastada no chão, em volta da performer. A cabeça foi rodada, houve cabelo cortado pelo chão. Perto do final das duas horas de circo, foi-lhe escrito no tronco (em abreviaturas por falha da caneta vermelha utilizada) “NÃO QUERO SER OBJETO SEXUAL” e, pouco depois deste momento, foi-lhe vestido um casaco. Notou-se no público um misto de maquiavelismo, medo, angústia e preocupação, mas duas horas não foram suficientes para que o animalesco saísse deles.
André Rosa, sentado, nu, com uma toalha branca esticada no chão com os mais variados objetos sobre ela, desde café, álcool etílico, curgetes, leite, enlatados, frutas, a bandeira nacional brasileira (queimada durante a performance) até objetos fetichistas. Uma cadeira vazia estava posicionada em frente ao performer que convidava o público a ali se sentar. Uma proposta era feita: “escolha 2 a 3 objetos”. Tocar no performer era proibido, mas mesmo assim, a regra não impediu que ele fosse acariciado por uma pena – escolha de uma pessoa do público. O performer espetou agulhas na pele enquanto contava três episódios da sua vida, comeu sopa instantânea com leite e álcool etílico com os dedos, foi vendado, banhado, violentado.
Esta ação performativa apropria-se do grotesco, atualizando influências ao século XIX e XX. O espanto inicial, depois repulsa e de seguida o fascínio dos corpos nus, vulneráveis e à mercê do público, criou um efeito de estranhamento notável na maioria dos espectadores presentes. O Unheimlich freudiano, aquilo que não nos é familiar, cria nestas ações uma experiência (entre a arte e a vida) de estranheza e reconhecimento em simultâneo. Recordemos que a aproximação entre o animal e o humano (quando o limite é ultrapassado na materialidade do corpo) era um aspeto evidente nas das aberrações clássicas. André Rosa e o Movimento Sem Prega inverteram os papéis de uma forma muito subtil, quase impercetível: suscitam no público a ativação freak, no sentido em que, nesta apresentação de uma arte dionisíaca, a transgressão, o excesso e o irracional foram trazidos pelo espectador e não pelos performers diretamente.
A performance foi documentada em vídeo e fotografia durante todo o tempo do espetáculo.
Ficha Técnica
Título: Freak Show Park
Criação: André Rosa
Performers: André Rosa, Andreia Morado, Daniela Proença, Pedro Vaz