O Meu País é o que o Mar não Quer

MV
Marta Veloso
20 julho, 2015≈ 7 mins de leitura

Vejamos O Meu País é o que o Mar Não Quer, de Ricardo Correia, nas palavras do próprio criador: “Este espetáculo documental que nasceu da minha estadia em Londres em 2013; é construído a partir do meu relato pessoal, incidindo nos testemunhos de emigrantes portugueses qualificados, recolhidos através de entrevistas, cartas, fotos e e-mails. Estes testemunhos são de pessoas que conheci em Londres, que tiveram de sair do nosso país ou que deixaram o país por vontade própria, mas que agora não conseguem regressar, por falta de perspetivas de futuro no país de origem. É a minha estória, a história de uma geração dividida entre partir e ficar.”

A peça parte assim da experiência pessoal de Ricardo Correia quando, com uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian, residiu em Londres, onde tem oportunidade para viver uma experiência que acabaria por ser simultaneamente artística e pessoal. Esta dimensão testemunhal é uma das características mais importantes deste espetáculo, além de ser um fator com o qual o público acaba por se identificar. O espaço cénico limitado ao palco aproxima o público, em jeito de confidência e, de certo modo, torna-o mais íntimo dos que pensam em sair do país e abandonar o abismo em que nos encontramos. Abandonar o país não significa, contudo, desistir dele, mas apenas uma tentativa de não desistirmos de nós. Ricardo Correia refere-se de modo assertivo a este estado geral do país: relata os últimos acontecimentos de uma forma cómica e peculiar, fazendo ainda troça das personagens da governação.

A presença do público em palco é um dos fatores mais significativos, pois confere um carácter físico à peça, como se nós próprios fôssemos chamados a participar. Este fator de proximidade provoca uma sensação de pertença que se acentua pelas semelhanças da situação comunicativa criada em palco com uma conversa familiar, partilhando histórias de vida. Interagimos, respondemos a perguntas, rimos em conjunto e alguns dos espetadores são a certa altura convidados para o centro do palco, para contarem a sua própria história, em jeito de conversa informal, com um copo de vinho na mão.

A encenação da peça foi bem estruturada, articulando-se em torno das diferentes personagens e identidades que Ricardo Correia assume sucessivamente, representando a galerias de pessoas e testemunhos colhidos durante a sua estadia em Londres. Desta forma, temos um ator que se mantém em palco e, simultaneamente, esta realidade projetada numa tela, através do uso do multimédia, abrindo-se assim perante nós dois espaços e duas realidades que se complementam, em que frequentemente a projeção ilustra a narrativa do ator, sugerindo através de fotos e desenhos uma realidade visual para os universos das palavras e das histórias contadas. Trata-se de uma escolha feliz e que atrai o espectador, mantendo-o focado, estimulando a sua imaginação. Esta conjugação entre cenário, multimédia e música promove a interação com as diversas vertentes do espetáculo.

O Teatro Académico de Gil Vicente foi o palco que acolheu esta versão de O Meu País é o que o Mar Não Quer, depois da versão de estreia na Casa da Esquina. A cenografia reduz-se a elementos essenciais: os móveis usados facilitam a movimentação e acomodam objetos usados nas cenas que convocam determinadas personagens no espetáculo. Os objetos presentes são mais significativos do que uma cenografia de grande escala. Quando o ator retira os sacos das provas, contendo um gravador, passaportes, livros, os pequenos bonecos e mais alguns pertences, percebe-se a sua importância no contexto da peça. Cada objeto testemunha uma parte íntima da experiência a contar. A relevância dada aos pequenos bonecos que passeiam por cima do mapa é também importante, pois simulam o percurso das pessoas que passaram pela mesma experiência e relacionam lugares, acontecimentos históricos e personagens. A camisa da loja de roupa Harrods, onde uma das suas entrevistadas trabalhou, foi um dos objetos mais significativos: uma rapariga que sofreu com as dificuldades de integração, com o medo, com saudades da sua família, admitindo que, até as coisas melhorarem, sentimo-nos alheados do mundo, onde nem sempre somos compreendidos. Uma história real que representa a realidade da nova emigração. O pequeno gravador permite uma relação direta com a voz dos que fizeram parte da experiência de Ricardo Correia. Podemos ver ainda fotografias de emigrantes, a quem foi pedido para escrever num cartaz o que sentiam ao chegarem a um novo país; a palavra medo surge várias vezes. Famílias separadas, como o pai de Inês que emigrou quando esta era ainda uma criança. Tirou depois uma foto no mesmo banco de jardim onde se tinha sentado há muitos anos atrás, para celebrar o aniversário da sua filha, recordando o momento. Todos estes objetos representam histórias sinceras e reais que não me deixaram indiferente.

O uso do multimédia foi o complemento essencial na peça. Começando com a dupla presença do ator, tanto no palco como na tela, representando outras personagens ou contando a sua própria história. Existe uma constante interação com a câmara: o ator aparece ele próprio projetado na tela, em imagem aumentada, permitindo-nos ver todos os traços e expressões. O trabalho de Filipa Malva é de grande qualidade. O multimédia é usado para contar a história, criando um efeito de simulação, recorrendo a imagens filmadas na cidade de Londres.

O desenho ao vivo, executado por Filipa Malva, complementam este processo de reconstrução visual da experiência; acentuam momentos cruciais da peça. Os desenhos, mesmo quando mais abstratos e minimalistas, traduzem o percurso atribulado do ator-emigrante. A banda sonora e a iluminação sintonizam propositadamente com os diversos momentos narrativos, em momentos cómicos e comoventes.

O trabalho do ator é especialmente notável. O trabalho de voz e de corpo de Ricardo Correia é de assinalar, vindo ao de cima a sua formação em Teatro Físico que concretizou em Londres durante a mesma estadia convocada pelo espetáculo. Sem grande aparato de figurinos, utilizou habilmente a sua voz e o seu corpo. A forma como projeta a voz nos vários momentos ao longo da peça, tanto em momentos de maior comicidade como em momentos comoventes, convoca o espectador para o mundo da ficção. O trabalho de voz é conjugado com o seu trabalho de corpo, movendo-se e acompanhando a voz e o texto que é dito. Os movimentos em palco conjugam-se com a voz em palco. Achei estimulante o trabalho do ator pela sua constante aproximação ao público, até culminar na chamada de duas espetadoras ao palco, elas próprias atravessadas pela experiência dissonante da emigração.

Ficha técnica

Título: O Meu País é o que o Mar não Quer
Texto, encenação e interpretação: Ricardo Correia
Espaço cénico e desenho em tempo real: Filipa Malva
Mistura de som: João Gaspar e Ricardo Correia
Direção técnica e desenho de luz: Jonathan de Azevedo
Produção executiva: Sara Seabra
Design: Fábrica Mutante
Fotografia: Filipa Alves
Produção: Casa da Esquina, inserida no apoio bianual da DGARTES/SEC 2013/2014
Residência artística: LAC – Laboratório de Actividades Criativas
Co-produção: TAGV
Organização: Reitoria da Universidade de Coimbra, TAGV

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